*Lineu Neiva Rodrigues
Até 2050, a demanda global por água deve crescer em pelo menos 40%, ao passo em que algumas estimativas apontam que o aumento da pressão por alimentos deve representar um incremento de mais 200 mil pessoas/dia até aquele ano. Por isso tão importante compreender o papel da água na agricultura, onde está armazenada, qual a disponibilidade, por onde ela trafega e depois é devolvida à natureza.
Com cerca de 71% da superfície terrestre é coberta com água, totalizando um volume de aproximadamente 1.386.000.000 km³. Esse é o nosso estoque de água na terra, que é o mesmo há milhares de anos e não há indicativos de que ele irá se alterar. Infelizmente, nem toda essa água está prontamente disponível para uso.
Desse nosso estoque hídrico, cerca de 97,5% dele está nos oceanos. Dos 2,5% que sobram, 76,8% estão nas calotas polares e geleiras, 22,7% são águas subterrâneas e o 0,5% restante está armazenado em outras fontes hídricas, como os rios, que representam 0,006% dos 2,5% e é a água que está mais prontamente disponível para uso.
A quantidade de água (vazão) que passa anualmente pelos rios do mundo é da ordem de 45.500 km³. A vazão total dos rios brasileiros é algo em torno de 179.000 m3/s. Considerando todos os usos (indústria, irrigação, abastecimento urbano, etc.), a demanda hídrica total no Brasil é da ordem de 2.083 m3/s. Ou seja, cerca de 1,2% da água disponível, levando em consideração apenas os rios, é outorgada e assume-se que está sendo retirada dos rios. Desse total de água que é retirado, 2.083 m3/s, 52% é para irrigação. Isto é, no Brasil cerca de 0,6% da água disponível nos rios é utilizada pela irrigação.
Embora o Brasil tenha mais de 12% das reservas de água doce e algumas das maiores bacias hidrográficas do mundo, a água se tornou um fator limitante para o desenvolvimento econômico do país, devendo a ela ser atribuído um valor econômico, além de uma gestão adequada para que possa suprir, de maneira satisfatória, além das demandas ambientais, os demais usos.
A água é um recurso natural e limitado, sendo mais limitada em algumas regiões do que em outras. A percepção do indivíduo em relação ao clima e a água é local. Nesse sentido, a percepção, em várias regiões do país, de que a quantidade de água está reduzindo, é viesada e não suportada pelos dados observados ao longo de vários anos.
Em relação a disponibilidade hídrica, a base de análise do indivíduo é a bacia hidrográfica em que ele está vivendo. Nessa escala, geralmente existe uma grande variabilidade temporal da disponibilidade hídrica e os períodos de seca, em geral, são mais marcantes que os períodos chuvosos, o que pode trazer essa impressão, muitas vezes equivocada, de água está reduzindo ou acabando.
A capacidade de suporte das bacias hidrográficas, unidade de gestão, é limitada. O crescimento desordenado e o uso inadequado de recursos hídricos podem levar ao esgotamento da reserva hídrica da bacia, o seja, esgotamento da quantidade de água a bacia é capaz de fornecer para os diferentes usos. Neste contexto, é importante um olhar atendo e cuidadoso para não extrapolar os limites físicos-hídricos da bacia, o que pode levar a falta de água e ao surgimento de conflitos.
Quando se pensa nos recursos hídricos e nos seus usos e usuários, é fundamental considerar as aptidões/vocações das regiões. Isto é, a gestão deve considerar as características dos territórios. O Brasil é um país de dimensões continentais, apresenta grandes diferenças sociais, ambientais e econômicas, o que faz da gestão de recursos hídricos uma atividade ainda mais desafiadora. A gestão deve ser adaptativa às realidades regionais, de forma a considerar suas características, incluindo um olhar diferenciado para as bacias hidrográficas críticas, onde a disponibilidade hídrica já se encontra comprometida, assim como onde já é realidade a ocorrência de conflitos pelo uso da água.
A água por natureza é um elemento dinâmico no espaço e no tempo. Ela circula entre regiões e entre produtos. Quando mais a água circular, mais benefícios ela traz para a sociedade. O estoque de água no planeta terra não varia em quantidade, a maior parte desse estoque, entretanto, é fixa no tempo, ou seja, não circula. A parte mais interessante da água é aquela que compõe o ciclo hidrológico, ou seja, aquela parcela do estoque hídrico que se movimenta espacial e temporalmente.
A parte dinâmica do estoque hídrico, no entanto, é muito variável ao longo do tempo e as mudanças no clima estão transformando a gestão qualificada deste ativo num dos maiores desafios que a humanidade enfrentará nas próximas décadas. Isto vai exige ampliado esforço científico e de comunicação. E Começa por contornar assertivas que animam o debate ideológico, mas que não constroem soluções, como os que acusam a agricultura de “consumir” 70% da água do Planeta. Os recursos hídricos “trafegam” pela produção de alimentos, é verdade, mas em seguida voltam à natureza praticamente intactos.
O que gera riqueza e bem estar para a sociedade é o tráfego da água nos e entre os produtos, inclusive no próprio ser humano. Essa movimentação da água é muito bem representada pelo ciclo hidrológico. Neste sentido, de tempos em tempos, ressurge a ideia de se cobrar pela quantidade de água exportada com um bem ou um serviço. Essa surgiu logo após as primeiras publicações apresentando o conceito de água virtual, no início da década de 90.
O conceito de água virtual foi criado com o objetivo principal de se estabelecer um indicador de quanta água é necessária para se produzir diferentes bens e serviços. Isso permitiria que países com elevada escassez hídrica pudessem importar produtos que demandam muita água na sua produção e focassem sua produção em produtos que demanda pouca quantidade de água para sua produção. Essa informação poderia ser utilizada também para mapear as aptidões produtivas das regiões. Isto é, países com baixa disponibilidade hídrica poderia economizar a sua água importando bens ou serviços que demandam muita água para sua produção, como, por exemplo, alimento. Neste contexto, seria natural que o Brasil, pelos seus recursos hídricos, fosse enquadrado na categoria de países destinados a produzir alimento.
Com esse conceito veio também a ideia do comércio de água, que foi deturpado da sua concepção inicial. Esse conceito foi posteriormente refinado e passou a indicar quanto de água azul, verde e cinza é utilizada na produção de bens e serviços. Essa informação pode ser útil no planejamento de recursos hídricos. O conceito, entretanto, foi setorizado e utilizado de forma inadequada em várias situações, criando a ideia, por exemplo, de cobrança pela água exportada. Levando a distorções conceituais quando, por exemplo, se publica, sem uma contextualização, que se utiliza 140 litros de água para se produzir uma xícara de café. Essa informação sem um contexto, confunde a sociedade, criando debates desnecessário e tirando o foco das questões principais.
No balanço final, todos os países importam e exportam água. A água, se não for utilizada para produzir alimento ou outro bem qualquer, será exportada naturalmente pelo ciclo hidrológico. Um detalhe é que quando a água chega ao oceano ela pode levar algumas centenas de anos para voltar a fazer parte do ciclo hidrológico. A água circula e seria insensato cobrar pela sua circulação.
Para complicar ainda mais, o conceito de água virtual ficou ainda mais confuso com a inserção do conceito de pegada hídrica, introduzido no início do ano 2000. Esse conceito tem mais haver com a quantidade de água gasta por um indivíduo, comunidade, país ou por um setor específico. Ele é definido como o volume total de água usado para produzir os bens e serviços consumidos pelo indivíduo ou comunidade ou por um setor. Ele é um indicador de uso de água. Quando utilizado de forma inadequada, traz comparações sobre usos que podem distorcer às informações.
Na maior parte das vezes, o problema é criado por uma inadequada definição das condições de contorno do problema, levando ao uso de métricas equivocadas e conclusões erradas. É importante estabelecer métricas/indicadores específicas para cada uso, que devem ser pactuadas com os usuários e muito claras para a sociedade. Não se pode esquecer da demanda ecológica. Ou seja, é preciso manter no rio uma quantidade de água mínima capaz de manter as funções oferecidas pela água, garantindo as condições mínimas de manutenção de ecossistemas aquáticos.
Essas métricas servem para se avaliar possibilidades de melhorias de uso da água dentro do próprio setor usuário e, via de regra, não são adequadas para se fazer comparações entre setores. Por exemplo, aumentar a eficiência de irrigação com o objetivo de reduzir a escassez hídrica, na meso e macro escala, não resulta nos resultados que se imagina. A razão para isso é que muitos dos conceitos frequentemente utilizados para definir eficiência do uso da água subestimam sistematicamente a eficiência na escala de bacia hidrográfica.
As previsões são de aumento de demanda hídrica. Assim, será cada vez mais preponderante adotar estratégias de manejo, que considere os recursos hídricos de forma integrada, e que almeje uma alocação equitativa, considerando os usos múltiplos da água e a bacia hidrográfica como unidade de referência. Essa abordagem integrada dos recursos hídricos demandará soluções científicas inovadoras que mudarão a forma de trabalhar a agricultura e de produzir alimentos.
Nas últimas décadas observam-se avanços importantes na pesquisa em recursos hídrico, que deverão, cada vez mais, incorporar uma visão sistêmica do sistema hídrico, onde o curso d´água, em sua qualidade e quantidade, é reflexo das atividades que ocorrem no todo da bacia hidrográfica. As ações, de maneira geral, ainda são isoladas e difusas, quando deveriam ser integradas.
Hoje se faz necessário a construção de uma estratégia que vise à evolução da economia baseada no uso e utilização dos recursos renováveis apoiada sobre o conceito de cadeia de valor. A estratégia, cada vez mais evidente, indica que se deve levar em conta os paradigmas da bioeconomia, os quais definem uma abordagem coerente, interdisciplinar e trans-setorial, visando, portanto, uma economia mais inovadora e de baixo carbono que concilie as necessidades em termos de agricultura e usos das águas, segurança alimentar e do alimento.
A ciência deve gerar conhecimento no sentido de garantir o uso sustentável dos recursos hídricos, sendo necessária mais pesquisas em relação aos mecanismos que contribuem para aumentar a oferta hídrica na bacia. Dentre esses, os sistemas de conservação do solo, que estão em constante adaptação e evolução, são os que apresentam o maior potencial de contribuir para os recursos hídricos em termos de sua qualidade e quantidade. Vê-se como prioritária o avanço no conhecimento de mecanismos destinados ao controle da erosão, dessalinização, redução da evaporação e aumento da infiltração e da capacidade de retenção da água no solo.
Os estudos indicam que cerca de 80% da produção adicional de alimento que a sociedade demandará para atender as suas necessidades, serão provenientes de áreas irrigadas, que é a principal usuária dos recursos hídricos. Assim, será cada vez mais importante gerar conhecimentos que contribuam para melhorar a eficiência de uso da água na irrigação, reduzir perdas na condução, melhorar o manejo do sistema e a eficiência de uso, desenvolver técnicas de gerenciamento da demanda e desenvolver culturas mais resistentes ao estresse hídrico.
Outro importante aspecto que poderá ser considerado, apesar de seu uso atual ser incipiente, são as águas residuárias. Elas têm grande potencial de uso e poderão se tornar uma importante ferramenta para o gerenciamento dos recursos hídricos e de políticas ambientais no Brasil. Há necessidade de avançar, portanto, nas pesquisas relacionadas ao reuso da água no meio rural e aproveitamento de água de chuva. Além disso, faz-se necessário incluir pesquisas para a avaliação e quantificação da poluição difusa, considerando também a contaminação por substâncias tóxicas, metais pesados, fertilizantes etc.
A maior parte dos recursos hídricos ainda continua sendo manejados de maneira fragmentada, desconsiderando relações importantes, como, por exemplo, aquela existente entre as águas subterrânea e superficial. A ciência precisa avançar para entender melhor a dinâmica das águas subterrâneas, ter um melhor conhecimento dos aquíferos, tanto em escala regional, quanto local, e sua interação, nos diferentes ambientes, com a água superficial, contribuindo para a gestão integrada dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos.
É importante avançar nas pesquisas para compreender melhor como e em que magnitude as mudanças climáticas afetam os processos hidrológicos e os aspectos quantitativos e qualitativos dos recursos hídricos nas diferentes regiões brasileiras.
A alocação da água ganhou impulso com a escassez de água. Os processos de tomada de decisão, por outro lado, estão cada vez mais complexos, com necessidade de decisões mais rápidas, além de depender de análises de quantidade de dados cada vez maiores. Esses fatores aumentam o risco de tomadas de decisão equivocadas. Torna-se, portanto, importante avançar nas pesquisas relacionadas às tecnologias da informação, da comunicação, de big-data e de modelos de inteligência computacional e simulação que possam viabilizar a emissão de alertas
e suporte à decisão.
Adicionalmente, ocorrem necessidades de formalizações de conhecimentos sobre o papel do comportamento humano no uso da água. Assim, ganha importância a estruturação de programas efetivos de comunicação para o estabelecimento de estratégia abrangente e integradora para se enfrentar os vários problemas relacionados ao uso da água. Neste sentido, é importante observar que já existem conhecimentos que poderiam ser utilizados de imediato. Os novos avanços científicos prospectados, necessários para manejar o aumento da escassez hídrica e outros problemas emergentes dependerão fortemente da constituição dessas bases de conhecimento, de novas tecnologias, de estratégias de manejo e certamente de políticas públicas que orientem as interações dos indivíduos com a natureza em sociedade.
Logo, no Brasil, a ponte rural-urbano fundamentada no nexo água-alimento precisará ser robusta e sólida, de forma que a economia circular venha a ser praticada integralmente, com foco no ajuste do cenário de negócios como de costume para novos cenários baseados em inovações tecnológicas e também alternativos para que, de fato, viabilizem os direitos para o uso da água e o acesso pleno aos alimentos, tanto para consumo interno como para a exportação, conectados e baseados nos novos conceitos da bioeconomia e fundamentados em uma Política Pública de Estado.
O Brasil tem grande aptidão para agricultura. Isso deve ser entendido pela sociedade como um dos nossos mais importantes ativos. Para que o nosso papel estratégico de produtor de alimentos possa ser consolidado, é importante que os nossos agricultores tenham segurança hídrica. Isto é, ao se pautar questões essenciais que envolvam os recursos hídricos, deve-se colocar nessa pauta, como política de estado, de maneira estratégica, a irrigação como a principal tecnologia para garantir estabilidade e sustentabilidade à produção de alimentos.
*Lineu Neiva Rodrigues - Pesquisador da Embrapa Cerrados
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