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SEIS IDEIAS À PROCURA DE UM ESTADISTA

II. UMA QUARENTENA AMAZÔNICA: O REENCONTRO COM O DESENVOLVIMENTO REGIONAL SUSTENTÁVEL


Ex-Ministro da Fazenda e do Planejamento (Governo Itamar), Paulo Haddad, Conselheiro do Fórum do Futuro foi buscar em Pirandello a inspiração para trazer essa nova e instigante série do nosso Site. Serão seis capítulos, publicados semanalmente.


Hoje trazemos o segundo capítulo:


UMA QUARENTENA AMAZÔNICA: O REENCONTRO COM O DESENVOLVIMENTO REGIONAL SUSTENTÁVEL


Paulo Roberto Haddad

1. A renovação das ideias: No Prefácio de sua obra clássica “Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro”, de 1936, John Maynard Keynes afirmou: “A elaboração deste livro foi para o autor uma longa luta de libertação, e sua leitura deve ser o mesmo para a maioria dos leitores, se as investidas do autor sobre eles tiverem sucesso – uma luta de libertação das formas habituais de pensamento e de expressão. As ideias aqui expressas tão laboriosamente são extremamente simples e deveriam ser óbvias. A dificuldade não está nas novas ideias, mas em escapar das velhas, que se ramificam, para aqueles que foram criados como a maioria de nós foi, por todos os cantos de nossas mentes”.

Quando um jovem observa as imagens das queimadas na Amazônia e no Pantanal, a lenta morte de rios, a poluição do ar da metrópole em que habita, o registro de milhares de espécies da fauna e da flora de nossa biodiversidade que desaparecem década após década, ele se pergunta quais seriam as ideias que estavam “nos cantos das mentes” daqueles que, no passado e no presente, tomaram decisões econômicas que provocaram tantos desastres ambientais em seu país.

2. Biopirataria na Amazônia: O que pensam madeireiros, garimpeiros, extrativistas, empreendedores de pecuária extensiva e da agricultura tradicional, quando avançam sobre o patrimônio natural da Amazônia? Consideram a Região como um mega almoxarifado de valiosos recursos naturais renováveis e não renováveis, ao qual têm livre acesso em busca de oportunidades para negócios lucrativos. São indivíduos ou organizações com interesses autocentrados e de cálculo racional que, para extrair o valor de uso direto específico da madeira ou não madeira, não se abalam em levar de roldão os múltiplos valores econômicos da floresta prístina (resgate de carbono, filtragem das águas, polinização, banco genético, microclima, habitat etc.). Acabam por realizar um processo de autofagia econômica: o valor criado e apropriado individualmente por eles é muito menor do que o valor destruído socialmente para as atuais e futuras gerações.

Da mesma forma, indivíduos e famílias pensam que o meio ambiente é um mega lixão onde podem depositar, com livre acesso e sem custos sociais, os resíduos e os dejetos dos seus padrões de consumo de bens duráveis (emissão de CO²) ou não duráveis (lixo orgânico e inorgânico), assim como de seus padrões de produção extrativista (assoreamento dos rios pelo garimpo ilegal) ou industrial (poluição do ar nas grandes cidades).

Contrapondo-se a essa ideia do meio ambiente, a qual vem desde o Período Colonial, da extração do Pau-Brasil ao desmatamento da Mata Atlântica nos diferentes ciclos do modelo primário-exportador, há uma nova concepção que considera o meio ambiente, na perspectiva da Ecologia Integral, como um envoltório contendo, provisionando e sustentando o sistema econômico. Como diz o Papa Francisco: “O ambiente humano e o ambiente natural se deterioram conjuntamente e não se pode combater degradação ambiental a não ser que se atinjam as causas da degradação social e humana”.

A ONU estabeleceu, após a ll Grande Guerra, um sistema de contas da sociedade visando a identificar, para cada país ou região, os níveis de produção, de consumo e de investimentos de bens e serviços, dos quais se derivam indicadores sobre a prosperidade e o crescimento econômico. Nos anos 1970, coordenou também a elaboração dos indicadores de desenvolvimento humano (IDH), de pobreza e de miséria social, permitindo analisar o grau de concentração de renda e de riqueza em cada país.

No século 21, promoveu uma grande mudança no seu sistema de contas econômicas e sociais para integrar as contas satélites relativas ao meio ambiente. Esse sistema, que vem sendo implantado em muitos países (ainda não no Brasil), permitirá calcular o valor econômico do estoque de capital nacional (florestas prístinas ou plantadas, bacias hidrográficas, terras agricultáveis, reservas minerais, etc.) e o valor dos serviços ambientais que produzem para uma sociedade.

Esses serviços de uso e de não uso dos recursos ambientais são classificados pela ONU em quatro categorias. Tomando como exemplo as florestas tropicais, tais serviços são: serviços de provisão (alimentos ,matérias-primas, bioenergia, água pura, recursos medicinais, etc.);serviços regulatórios (clima local, sequestro de carbono, filtragem das águas, fertilidade e erosão do solo, polinização, etc.); serviços de habitat (espécies de flora e fauna, biodiversidade, banco genético, etc.);serviços culturais (recreação, turismo, apreciação estética, experiência espiritual, etc.). Os serviços exemplificados podem ser amplamente estendidos e de forma diferenciada, sendo indispensáveis em qualquer processo de desenvolvimento sustentável.

Já há metodologias consolidadas para calcular o valor econômico total de cada ativo ou serviço ambiental. Assim, quando há um desmatamento ou uma queimada na Amazônia, por exemplo, seus responsáveis, indivíduos ou empresas, podem fazer negócios altamente lucrativos, mas há destruição do valor econômico para as atuais e futuras gerações.

Jared Diamond, geógrafo da Universidade da Califórnia, ilustra como o uso não sustentável da base de recursos naturais pode levar uma sociedade a um processo de empobrecimento, narrando a história do Haiti e da República Dominicana. Uma única ilha (São Domingos ou La Española), dois povos, duas histórias e duas trajetórias divergentes de desenvolvimento.

Originalmente, ambos os países tinham como característica dominante a exuberância de suas florestas. Ao longo do tempo, a questão da sustentabilidade ambiental foi tratada de forma diferente no modelo de crescimento prevalecente em cada país: o Haiti tem atualmente apenas 1% do seu território florestado e a República Dominicana tem28%, sendo que o Haiti tem o menor IDH do Mundo e o IDH da República Dominicana, semelhante ao do Brasil.

Se estimarmos as contas sociais do Brasil em termos integrados, iremos constatar o quanto o País vem perdendo o seu potencial produtivo, com cerca de 90% de áreas desmatadas na Mata Atlântica, 20% no Anel Externo da Amazônia, e com 16% do Território Nacional desertificado no Nordeste e na Mesorregião da Campanha Gaúcha, etc. Senão houver uma Grande Transformação, o valor de legado que deixaremos para os nossos netos será um país ecologicamente degradado, socialmente desigual e economicamente deprimido.

É preciso superar, pois, a velha ideia de produtores e consumidores tratarem o meio ambiente como um almoxarifado de recursos naturais de livre acesso e de demanda irrestrita, levando à sua sobre-exploração, considerada “a tragédia dos bens comuns”, contrariamente aos interesses da sociedade em geral, principalmente das futuras gerações.

É preciso enfrentar a boa luta de libertação “das formas habituais de pensamento e de expressão”. Como diz o médico indiano Deepak Chopra: toda vez que você tentar reagir da mesma maneira antiga, pergunte se você quer ser um prisioneiro do passado ou um prisioneiro do futuro.

3. Uma Quarentena Amazônica: Michel Serres, influente filósofo francês, propõe que, à semelhança do contrato social que busca uma ética nos conflitos de interesses dentro da sociedade, haja também um contrato natural que supere a guerra contra a natureza e tenha a paz como meta. Pois, como afirma: “O balanço das perdas infligidas hoje ao Mundo equivale ao das devastações que uma guerra mundial teria deixado atrás de si”.

Ao longo da história econômica do Brasil, a Amazônia passou por inúmeros processos diferenciados de integração nacional, desde os grandes projetos de investimento dos anos 1970 até o processo desregulamentado e predatório de “porteira aberta” para livre acesso aos recursos naturais da Região, com a complacência e o beneplácito da atual administração do Governo Federal.

Durante os últimos quarenta anos, como consultor de projetos de desenvolvimento públicos e privados na Amazônia, pude observar eventos decorrentes de políticas públicas que foram benéficos para a população e para o meio ambiente regional, mas também inúmeros eventos de ações governamentais portadores de desastres ambientais e do empobrecimento da população regional.

Mais importante: enquanto o Governo Federal elaborava, recorrentemente, promessas ilusórias para promover o desenvolvimento sustentável da Região, avançavam os indicadores de desigualdades sociais e de pobreza, assim como o uso predatório de seu ecossistema. O patrimônio (capital) natural era destruído através dos desmatamentos extensivos e das queimadas criminosas; as bacias hidrográficas se contaminavam pelas substâncias químicas e pelos assoreamentos da mineração legal e do garimpo ilegal; os serviços ambientais se diluíam no tempo, levando à queda da produtividade dos recursos naturais e ao consequente empobrecimento da população rural.

Quando essas questões sociais, econômicas e ambientais se acumulam no processo de expansão econômica de uma região, não serão pequenas ações incrementais de ajustes sucessivos necessárias para reverter o processo de decadência socioeconômica e socioambiental, mesmo que ainda haja setores e áreas em uma etapa de expansão e de prosperidade.

Se não houver uma Grande Transformação estrutural no modelo de desenvolvimento regional, a decadência torna-se lenta e irreversível, pois o tempo não para e as assimetrias se acumulam e se reproduzem.

Nesse contexto, prevalece o pensamento de Michel Serres e um novo contrato natural tem que ser arquitetado e implementado para a Amazônia. A nossa proposta é a de que a Região tenha um regime especial decenal de intervenção do Governo Federal, visando à reestruturação e à promoção do seu desenvolvimento sustentável, através de ações reestruturantes de conservação, preservação e reabilitação, considerando como exemplos de ações programáticas:

a. Gustavo Krause, Ministro do Desenvolvimento Urbano e do Meio Ambiente (1995 – 1999) no Governo FHC, conseguiu a aprovação de um acordo que determinava que bancos públicos brasileiros só concedessem crédito para projetos considerados sustentáveis do ponto de vista ambiental. Porém, com o passar do tempo, esse acordo não se concretizou e os bancos continuaram a financiar projetos (capital de giro e capital de investimentos diretamente produtivos) sem exigir contrapartidas ou condicionalidades para a sustentabilidade ambiental.

Os próprios bancos privados têm, de tempos em tempos, assumido compromissos de não financiar projetos que sejam reprovados numa avaliação social e ambiental, de acordo com a legislação prevalecente. Entretanto, a maioria desses compromissos não se realiza e eles se tornam meras peças de marketing empresarial.

Regime especial: normatizar a corresponsabilidade legal dos bancos públicos e privados na recuperação dos danos ambientais provocados por projetos de investimentos por eles financiados na Amazônia. Além do mais, os bancos públicos deveriam adotar um sistema de avaliação social de projetos (Banco Mundial / OCDE), lado a lado com o tradicional sistema de avaliação financeira na decisão sobre os empréstimos a serem concedidos. Esse mesmo regime especial deve valer para projetos de investimentos que recebam algum tipo de incentivo fiscal ou financeiro para se localizar na Amazônia.

Exemplos: se um banco financia um projeto de garimpo ilegal, ele passa a ser corresponsável pela recuperação da área onde ocorreu a extração mineral; se uma agência de desenvolvimento regional aloca incentivos fiscais ou financeiros em projetos de investimentos que desrespeitem os fundamentos prevalecentes das políticas públicas ambientais, ela passa a ser corresponsabilizada pela reabilitação dos danos ambientais; nesse Regime Especial para os financiamentos e incentivos, terá particular relevância a gestão do Departamento de fiscalização do Banco Central para controlar o que se denomina “business as usual”.

b .Os danos ambientais à Amazônia, provocados pela omissão ou até mesmo pelo incentivo da atual administração do Governo Federal, aceleraram os processos históricos de uso predatório dos recursos naturais renováveis e não renováveis com tal intensidade que é preciso que sejam adotadas medidas radicais para conservação, preservação e reabilitação dos ativos ambientais e de seus serviços. Não basta apenas proibir novos projetos de investimentos para a expansão da produção de grãos e de carnes durante os próximos dez anos das empresas que não respeitarem o rigor da legislação ambiental. É preciso fortalecer as instituições que fiscalizam a aplicação das normas e leis prevalecentes.

Regime Especial: é preciso que áreas legalmente desmatadas ou queimadas para a expansão da produção sejam reservadas para serem regeneradas durante os próximos dez anos. Mesmo que não seja comprovada a intencionalidade do proprietário no desmatamento ou na queimada, fica proibido o seu uso para plantio ou para a pecuária extensiva.

c. Fortalecimento e ampliação da Zona Franca de Manaus (ZFM) como um dos polos de desenvolvimento da Região, visando à geração de renda e emprego de qualidade, procurando integrá-lo mais profundamente aos mercados de trabalho na sua área de influência regional. AZFM é uma alternativa bem-sucedida de atividade econômica não predatória do ecossistema da Amazônia, uma proposta definida em 1967 pela Escola Superior de Guerra, quando eram Ministros Roberto Campos e Gouveia de Bulhões, do Planejamento e da Fazenda.

Uma forma de consolidar a ZFM é estabelecer um polo de Bioeconomia como proposto pelo Instituto Escolhas, para que, através do modelo de cluster de empresa-âncora, seja possível localizar na área da ZFM as atividades intensivas de ciência e tecnologia, sendo que as atividades tradicionais de primeiros beneficiamentos nos clusters seriam dispersas nos territórios amazônicos, formando poderosas cadeias de valor, possivelmente únicas e competitivas globalmente. Ver, por exemplo, a sugestão da cadeia de valor do guaranazeiro, de Everton Roberto Cordeiro e André Luiz Atroch, da EMBRAPA OCIDENTAL.

Regime Especial: A título de ilustração sobre a operacionalização de algumas dessas diretrizes de uma Quarentena Amazônica, que tem por objetivo preservar, conservar e reabilitar o ecossistema da Região, podemos destacar também o papel dos bancos privados no financiamento de projetos que têm a capacidade de gerar emprego e renda, num contexto de respeito às regras de sustentabilidade em uma economia circular.

Um grupo de bancos privados brasileiros tem manifestado sua responsabilidade social ampliada ao colaborar com ações programáticas para o processo de desenvolvimento sustentável da Amazônia. Não faz sentido, dentro de sua missão institucional, se limitar a apoiar apenas a elaboração de novos estudos e pesquisas sobre a Amazônia que apenas conduzam a diretrizes e recomendações gerais sobre o que fazer para a promoção do desenvolvimento da Região.

Uma forma de operacionalizar as ações propostas é a constituição de um fundo financeiro, sob a forma de consórcio privado de financiamento e de venture capital, para apoiar projetos de investimentos relacionados com a preservação, a conservação e a reabilitação dos ecossistemas dos diferentes biomas amazônicos. Para esse objetivo, é necessário que os projetos sejam avaliados tecnicamente em termos de sua rentabilidade privada e hierarquizados de acordo com a sua taxa interna de retorno social (metodologia Banco Mundial/OCDE), antes de serem encaminhados para decisão dos comitês de crédito e de empréstimos dos bancos privados. As condições de financiamento devem ser adequadas para as características dos projetos e serem negociadas e oficializadas junto ao Banco Central em termos de taxas de juros, prazos de carência e de amortização, etc.

Há, seguramente, algumas dezenas de projetos de desenvolvimento sustentável da Amazônia, que passariam pelos testes das taxas internas de retorno financeiro e de retorno social, identificados por instituições públicas, privadas e do Terceiro Setor para serem promovidas economicamente. São projetos de desenvolvimento sustentável dos recursos ambientais da Amazônia, intensivos de conhecimento científico e tecnológico nos segmentos produtivos dos fitoterápicos, fitocosméticos, madeireiro, piscicultura, floricultura, nutricêuticos/suplementos alimentares, fruticultura, etc.

Se o novo Presidente da República desejar promover o resgate da imagem internacional do Brasil, atualmente com repercussões adversas sobre as nossas exportações dos setores produtivos intensivos de recursos naturais, e desejar respeitar o nosso patrimônio natural para as atuais e futuras gerações, será fundamental que implemente uma nova política ambiental, a qual tenha como objetivo preservar, conservar e reabilitar os nossos ecossistemas: os Pampas, os Cerrados, a Caatinga, a Mata Atlântica e, principalmente, a Amazônia.

A legislação, que vinha sendo implementada e aperfeiçoada para o processo de desenvolvimento sustentável, antes do seu desmonte a partir de 2019,oferece condições para normatizar ações de um Regime Especial para o Desenvolvimento da Amazônia.

Uma nova política ambiental é peça fundamental em um processo de Grande Transformação, a qual pressupõe uma renovação de ideias, pois, como afirmava Einstein: “Nenhum problema pode ser resolvido a partir do mesmo nível de consciência que o criou”.

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