*Francisco Barbosa
*Virginia Ciminelli
A gestão sustentável da água é, sem dúvida, um dos maiores desafios da humanidade nas próximas décadas. A água existe no Planeta no mesmo volume de estoque há mais de 300 milhões de anos, mas a transição climática chegou para alterar regime de chuvas e a disponibilidade efetiva em determinados locais e situações. A visão econômica prevalecente no Século XX considerava a água uma “externalidade”, um bem natural a custo zero. Na realidade atual, os recursos hídricos ganharam a condição de ativo precioso, orientado pela escassez, que exige uma abordagem transdisciplinar complexa. Para o Brasil, gestor de 12% da água doce disponível no Planeta, uma potente oportunidade.
A base lógica
A água é um recurso essencial, estratégico, renovável, porém finito. Assim, conhecer a disponibilidade hídrica de cada região do país, considerando as águas superficiais e subterrâneas, planejar e implementar boas práticas de seu uso são pré-condições para a construção de futuro, com qualidade de vida e desenvolvimento sustentável. Neste contexto são destacados dois temas: saneamento básico e a agricultura. O saneamento básico é um exemplo clássico das carências de infraestrutura do país, com reflexos significativos para a saúde humana e a qualidade ambiental. O agronegócio, por outro lado, é um exemplo de sucesso, seja no que se refere à participação do setor no mercado global, seja pelos avanços tecnológicos que propiciaram essa projeção. Em ambos os casos, a água – nos seus aspectos de quantidade e qualidade – é tópico central. E em ambos os casos são inúmeros os desafios e as oportunidades para soluções tecnológicas e de gestão que contemplem (i) a preservação dos recursos naturais, com atenção para as mudanças climáticas em curso e seus impactos, (ii) o aproveitamento racional dos recursos naturais para o desenvolvimento regional com sustentabilidade e (iii) maior inclusão social, alicerçada na capacitação em todos os níveis. Como principais premissas e considerações tem-se:
(i) O diferencial de riqueza hídrica do país (e de outros recursos naturais) deve ser usado prioritariamente para reduzir as desigualdades e aumentar a qualidade de vida e o bem-estar do povo brasileiro.
(ii) A degradação ambiental caracteriza regiões de baixo índice de desenvolvimento humano. Portanto, controlar o desmatamento, proteger os ecossistemas e recuperar áreas degradadas são ações vitais não apenas para a conservação da riqueza hídrica, mas também para o desenvolvimento regional.
(iii) A água é um denominador comum de várias ações a serem contempladas em um Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável. Como tal, pode e deve ser usada como um elemento natural para se buscar a convergência de diferentes correntes de pensamento.
(iv) A construção de um Plano de Desenvolvimento Sustentável requer a interlocução de diferentes áreas de conhecimento, a valorização da biodiversidade regional, além de possibilitar o fortalecimento de empreendimentos de pequeno e médio porte.
(v) Uma abordagem transdisciplinar é ainda essencial para se entender as interações e as consequências das intervenções humanas nos processos naturais, com destaque para as interações entre saúde, clima e ambiente.
(vi) Os inúmeros desafios centrados no tema água abrem um leque de oportunidades para soluções tecnológicas com agregação de valor e, assim, para o fomento do empreendedorismo e a participação industrial.
Brasil e suas águas: recurso finito e estratégico
O Brasil destaca-se pela abundância dos seus recursos hídricos. E esta é, certamente, uma das razões para a relevante produção de alimentos, a participação da energia renovável - 19.1% de biomassa de cana e 12,6% de energia hidráulica - na matriz energética (BEN, 2021) e o destaque como o país mais megadiverso do planeta. O Brasil responde por 12% do volume de água doce do planeta e 53% da água doce da América do Sul. A despeito dessa abundância, a distribuição é desigual. A maior parte da superfície de água (60% ou 10,6 milhões ha), concentra-se na Amazônia, com apenas 9% no Cerrado, e 12% na Mata Atlântica, que abriga c. 60% da população brasileira (Mapbiomas Água, 2020).
A água é um recurso essencial e estratégico, porém finito - seu uso cresceu 6 vezes nos últimos 100 anos a c. de 1% ao ano desde 1980s. Cuidar do diferencial hídrico do país dever ser uma prioridade. Segundo o MapBiomas (2020) o Brasil perdeu, entre 1990 e 2020, 15,7% de sua água de superfície em 54 das 76 sub-bacias hidrográficas avaliadas. Só o Mato Grosso do Sul perdeu 57%! As principais causas dessa perda são: conversão de florestas para pecuária/agricultura, redução do fluxo de água nos rios pela construção de represas para irrigação e dessede3ntação animal e o aumento da evapotranspiração a partir dos grandes reservatórios, com a consequente mudança nas interações do fluxo de água, biota aquática e processos ecossistêmicos (Palmer & Ruhi, 2019). Acrescente-se ainda os efeitos das mudanças do regime de chuvas e da frequência crescente de eventos extremos, como secas e inundações, além da relação de clima mais seco com temperaturas mais altas, que pode reduzir em até 30% o regime anual de chuvas (Pontes et al., 2020).
O país dispõe de capital humano e acesso a tecnologias que possibilitam conhecer a disponibilidade atual e futura dos recursos hídricos– superficiais e subterrâneos - em cada região e, dessa forma, planejar e elevar a eficiência do seu uso. Implementar políticas que favoreçam o monitoramento, a conservação e as boas práticas de utilização dos recursos hídricos – explorando fontes alternativas (e.g., reuso e águas pluviais) e usos múltiplos – cria oportunidades de inovação e negócios, e favorece a qualidade de vida e o desenvolvimento sustentável do país (ANE, 2021).
Água e saneamento no Brasil: o grande desafio
Apesar de toda sua abundância em água, o Brasil cuida mal de suas águas a julgar pelo baixo nível de saneamento básico do país – c. 94,7 milhões de brasileiros não tem seus esgotos coletados (Seminários Folha, 29/9/2020). Saneamento básico compreende quatro componentes - abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, limpeza urbana e coleta e destinação do lixo, e drenagem e manejo das águas de chuvas. O atendimento médio de água tratada é de 92,9% da população total, com uma perda média na distribuição de 35,66%, bem acima dos 15% tidos pela OMS como aceitáveis.
Em relação a esgotos, o índice médio de coleta no país é de 61,9%, dos quais o índice médio de tratamento em 2019 foi de 49,1%. Talvez explique índice de tratamento tão baixo o fato de que a média de investimento em tratamento de esgotos dos municípios brasileiros ser de apenas 20,27% da arrecadação (SNIS, 2019)! O Atlas Esgotos (ANA, [VC1] 2017) mostrou que diariamente são produzidas 9.098 ton. de carga orgânica, sendo que 5.516 ton. chegam aos rios e reservatórios mesmo após o tratamento dos esgotos. Ou seja, a maioria das estações de tratamento apresenta baixa eficiência, com implicações graves para a saúde humana e a qualidade ambiental.
Para universalizar o esgotamento sanitário serão necessários investimentos de R$149,5 bilhões, dos quais R$101,9 bilhões deverão ser aplicados na coleta e R$47,6 bilhões no tratamento. A aprovação do marco legal do saneamento básico em 2020 é um importante passo para viabilizar tais investimentos, pois permite a participação de recursos públicos e privados e possibilita a ANA editar normas de referência para o manejo de resíduos sólidos e a drenagem de águas pluviais em cidades, a serem observadas pelas agências reguladoras infranacionais, além de promover a capacitação técnica dos atores envolvidos na regulação do setor desde a esfera municipal até a estadual.
A carência de saneamento básico traz consigo uma série de oportunidades. Estas abrangem o desenvolvimento de soluções tecnológicas apropriadas às diversas realidades nacionais, o monitoramento de pandemias e a capacitação profissional, como propõe o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em ETES Sustentáveis (ETES Sustentáveis, 2022). Merecem atenção ainda os desafios associados à vida contemporânea e predominantemente urbana, como a remoção de constituintes traço (e.g., medicamentos), o tratamento de resíduos eletroeletrônicos, plásticos e outros gerados em grande volume nas cidades, bem como aqueles decorrentes do agronegócio em larga escala.
Água e agricultura sustentável
“Nos próximos anos, será necessário ampliar a eficiência no aproveitamento da água, solo e biodiversidade, para garantir a produtividade, recompor os recursos naturais e diminuir o impacto das mudanças climáticas no território nacional, para o que práticas conservacionistas, integração de diferentes sistemas produtivos e maior interdisciplinaridade nos estudos agronômicos deverão ser a base da agricultura brasileira nos próximos anos” (EMBRAPA, 2018).
O parágrafo acima traduz, basicamente, nossa visão sobre a centralidade e importância de uma nova visão da água para uma agricultura competitiva e sustentável. É importante considerar que só este setor utiliza, em média, 70% da água doce disponível no planeta (The World Bank, 2020).
A base do sucesso da moderna agricultura é a irrigação, que cobre apenas 20% da área global cultivada, mas responde por 40% da produção de alimentos (Molden et al., 2010; The World Bank, 2020). Esta é também mais eficiente que outras fontes alternativas de água (reuso, dessalinização, o manejo da bacia de captação e da precipitação local). Atenção especial deve ser dada à irrigação por pivôs centrais (no Brasil,c. 1,6 milhões de ha em 2020). Além de perdas de 50-60%, há que se considerar o consumo de energia para o funcionamento destas estruturas, o que irá impactar o preço final do produto cultivado. Estima-se que o mundo precisará produzir 60% mais alimentos para atender ao aumento da população mundial até 2050 (FAO, 2017a), para que somente a irrigação terá que crescer > 50%, reduzindo em c. 30% os recursos subterrâneos de água (Rickey et al., 2015).
Há ainda que se considerar a chamada “água virtual”, aquela quantidade de água utilizada na produção de uma commodity ou serviço (Hoekstra and Chapagain, 2007) e que tem uma conotação econômica internacional como aquela água exportada, que envolve um valor nas trocas comerciais. Globalmente, e para produtos industriais, este valor médio é de 80L/US$, variando entre distintos países (100L/US$ nos USA; 20 e 25L/US$ na China e na Índia). A água, como um dos serviços ecossistêmicos essenciais para a produção de alimentos ainda não é formalmente reconhecida e não tem seu valor incorporado aos preços finais dos produtos. Uma agricultura sustentável deve promover uma cultura de pagamentos por serviços ambientais, a começar pelo mais básico, o provisionamento de água.
O Brasil tem no agronegócio um caso de sucesso e protagonismo mundial. No período 2000-2021, a área plantada com cereais, oleaginosas e fibras aumentou de 79% e a produção cresceu 167%, com um aumento de 44% no uso do solo, graças à parcela importante de conversão de pastagens degradadas (Halum, 2021). Este é um exemplo do tremendo aumento de produtividade conseguido a partir de modernas tecnologias. O que se propõe é ampliar esse protagonismo, porém em bases que contemplem a sustentabilidade ambiental e inclusão social. A agricultura 4.0 deverá permitir o uso mais racional de insumos químicos, solo e água e estar acessível ao pequeno agricultor, evitando o potencial concentrador e de exclusão da revolução tecnológica em curso (EMBRAPA, 2018). Isso é particularmente relevante no Bioma Amazonas - 60 % do território nacional – onde a maior biodiversidade do mundo e a maior concentração fundiária, contrastam com o menor desenvolvimento em saúde, renda e educação do país.
*Francisco Barbosa - Departamento de Genética, Ecologia e Evolução – Instituto de Ciências Biológicas, UFMG.
*Virginia Ciminelli - Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais – Escola de Engenharia, UFMG.
Referências bibliográficas
Referências bibliográficas
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ODSs 6 e 15 -* Água limpa e saneamento: garantir disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento para todos;* Vida terrestre: proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da Terra e deter a perda da biodiversidade;
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