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Foto do escritorPaulo R. Haddad 

POBREZA E DESIGUALDADES SOCIAIS: TRÊS LEITURAS E O CASO BRASILEIRO


 

"Os principais defeitos da sociedade em que vivemos são a sua incapacidade para proporcionar o pleno emprego e desigual distribuição da riqueza e das rendas”. 

John Maynard Keynes (1936) 

 






INTRODUÇÃO :

 


OS PARADOXOS DE POLLYANNA, ALICE E CINDERELA 



1. Pollyanna é um clássico da literatura infanto-juvenil, escrito e popularizado a partir de 1913. Pollyanna gostava de praticar um jogo que consistia em extrair algo de positivo mesmo nas coisas mais desagradáveis ou desfavoráveis. Na Psicologia Social, essa atitude recebeu a denominação de “Princípio de Pollyanna” para designar atitudes ingênuas ou panglossianas diante de situações dramáticas, sofridas ou até mesmo catastróficas. 


Pois bem. O Brasil tem um PIB de 11 trilhões de Reais e está situado entre as dez maiores economias do Mundo. Exporta atualmente quase 350 bilhões de dólares ao ano. Dispõe de setores produtivos extremamente dinâmicos e competitivos globalmente. Assim, é muito difícil que o País deixe de crescer anualmente 1% a 2% do PIB. Ora arrastado pelos efeitos propulsores das boas safras ou da extração mineral, ora induzido por inovações tecnológicas dos setores intensivos de Ciência e Tecnologia.

Então, ainda que no intenso imbróglio macroeconômico do País, não há como deixar de comemorar algo de positivo que é uma taxa de crescimento do PIB acima do crescimento demográfico. 


Contudo, o Brasil vem se tornando, desde os anos 1980, um país de baixo crescimento. De 2017 a 2022, a taxa média de crescimento do PIB no Brasil foi de apenas 2,2%. Quando se leva em conta que a taxa média de crescimento da população residente por ano está em torno de 1,67%, fica claro que foi insignificante o aumento da quantidade de bens e serviços per capita produzidos por uma economia semi8-estagnada. No mesmo período, a China cresceu no acumulado mais de 340% em cinco anos.

 

Na verdade, o Brasil precisa crescer de forma sustentada e com estabilidade a uma taxa necessária de 5% ao ano para equacionar os seus inúmeros problemas socioeconômicos e socioambientais, que vão do desemprego aberto e do subemprego aos processos dos desmatamentos e dos garimpos ilegais, o que conseguirá caso venha a construir um novo ciclo de expansão da economia, o que envolve paciência administrativa, negociações políticas e experiência técnica. A alternativa poderia ser pensar e agir como Pollyanna: “Em tudo há sempre uma coisa boa para ser grato, se você procurar suficiente para descobrir onde está”. 




2. Pode-se destacar também o “Paradoxo de Alice” que perguntou ao gato que ri “onde fica a saída?”; “depende”; respondeu o gato; “de quê”? perguntou Alice; “Depende para onde você quer ir, pois qualquer caminho serve para quem não sabe para onde quer ir. “...Alice ficou ali sentada, os olhos fechados e quase acreditou estar no País das Maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los e tudo se transformaria numa insípida realidade.... 

Pois bem.


A Constituição de 1988, no seu Art. 6º, manifestou profunda preocupação com a pobreza e as desigualdades sociais no Brasil. A partir daí, foi sendo elaborado e implementado um conjunto expressivo de políticas sociais compensatórias, sendo que somente três delas (Bolsa Família, Previdência Social e Lei Orgânica de Assistência Social) realizam pagamentos em torno de 35 milhões de benefícios por mês.

Políticas que são absolutamente essenciais e indispensáveis para evitar que as classes D e E de nossa população mergulhem em um grau de pobreza africana, como os países da Somália, Burundi ou do Sudão do Sul. 


Contudo, essas ações compensatórias são insuficientes para erradicar a pobreza e as desigualdades sociais no País, as quais nascem, se perpetuam e se reproduzem desde o período histórico da escravidão, através do que se denomina regimes das desigualdades.


Não basta, pois, através de ações compensatórias ou de eventuais melhorias da renda domiciliar per capita, sinalizar que os indicadores de desigualdades sociais melhoraram. Os regimes de desigualdades são um contexto socioeconômico em que há interdependência entre múltiplas manifestações de desigualdades (habitação, nutrição, saúde, qualidade dos serviços públicos, etc.) e a institucionalização das novas formas de organização social das políticas sociais.

 

Na verdade, o Brasil é uma das maiores economias do Mundo que convive, no tempo e no espaço, com o fato de ter uma das maiores desigualdades sociais do Mundo. Em 2022, havia, segundo os critérios do Banco Mundial, 67,8 milhões de pessoas na pobreza e 12,7 milhões na extrema pobreza. De 2017 a 2022, o aumento da renda real dos mais ricos chegou a 49% enquanto os mais pobres (incluindo a classe média, o que chega a 95% da população brasileira) foi apenas de 1,5% em média. 


O Brasil precisa resgatar os processos de planejamento de longo prazo para a construção do futuro. Sem planejamento não há caminho favorável à medida que o tempo passa e o tempo não para. Como dizia Alice: “Dizem que o tempo resolve tudo. A questão é: quanto tempo?”


 


3. Desde 2014, a política econômica brasileira tem sido fundamentada no modelo de equilíbrio fiscal expansionista, o qual pressupõe que, com o ajuste fiscal articulado com as tríplices reformas político-institucionais (Tributária, Previdência e Administrativa), ocorrerá a retomada do crescimento impulsionada pelas forças livres dos mercados. 

Uma adequada coordenação da política fiscal e da política monetária poderá manter a dívida pública em níveis adequados e viabilizar as taxas necessárias para que o País supere as atuais crises econômica e socioambiental, o que poderá resultar na queda da taxa básica de juros.. 


Pois bem. O déficit fiscal consolidado no Brasil não é de natureza conjuntural como ocorreu em vários países desenvolvidos quando foram impactados pela crise de 2008 e da COVID-19. A condição necessária e suficiente para a retomada do crescimento nesses países foi a normalização do equilíbrio fiscal. No caso brasileiro, o déficit é de natureza histórico-estrutural e se configurou a partir dos anos 1990, quando a despesa pública cresceu de forma acelerada com a implantação das diferentes políticas públicas previstas na Constituição de 1988, enquanto a desaceleração do crescimento do PIB e da Renda Nacional levou a um crescimento pouco significativo da base tributária. Mário Henrique Simonsen e Delfim Netto advertiam que essa escala de despesas não caberia no PIB, a não ser que houvesse um crescimento do PIB em ritmo proporcional. 


Contudo, como é difícil politicamente equilibrar os usos e fontes de fundos que compõem um descompasso entre receitas e despesas do setor público consolidado, a política vai de ajuste em ajuste de curto prazo impulsionada por decisões ad hoc. Não há dúvida que o equilíbrio macroeconômico é indispensável para que haja condições para a efetividade da política monetária manter a inflação dentro da meta programada, mas, se depender do déficit zero, a cronologia do equilíbrio será imprevisível. 


Como a maioria das políticas sociais é financiada pelos recursos orçamentários anuais e plurianuais, elas têm que avançar num ambiente de incertezas, de cortes e de contingenciamentos, o que reduz a sua eficiência e a sua eficácia em termos de suas metas (objetivos quantificados) e da qualidade dos serviços públicos. 


Na verdade, os déficits fiscais têm sido parcialmente cobertos, de forma insuficiente, através da crescente dívida pública, de aumentos ocasionais de impostos e taxas, de rendimentos distribuídos pelas empresas estatais, de restos a pagar institucionalizados.

Os governantes, diante da avalanche de demandas legítimas para mais custeio e mais investimentos, têm de compartilhar, trimestre a trimestre, uma reprogramação orçamentária com sua base aliada, com enorme sacrifício dos compromissos prioritários com eleitores que os conduziram aos novos mandatos.

Uma trajetória que coloca a economia brasileira em banho-maria, sem veias abertas e sem progresso econômico e social significativo numa sociedade conformista. 


Os governantes, no início de seus mandatos, ficam sob o encantamento das benesses esperadas que os equilíbrios fiscais trarão com a eventual expansão do excedente econômico; Mas, no meio do caminho tinha uma pedra e a retomada do crescimento pode demorar ou até não vir (contexto que Robert Skildesky denominou de sadismo intelectual) e o seu desencantamento pode ocorrer, como em Cinderela , no meio de seu mandato, ou seja, antes da meia-noite. 


Descontentes podem querer reduzir o tempo necessário para viabilizar os seus compromissos eleitorais com artifícios micro e macroeconômicos. Nesse momento, coisas estranhas podem ocorrer na política econômica.  

  

 

POBREZA E DESIGUALDADES SOCIAIS: TRÊS LEITURAS E O CASO BRASILEIRO 

 

 



 

 

 A CONCENTRAÇÃO DENTRO DA CONCENTRAÇÃO DA RENDA 



O pesquisador Sérgio Gobetti, do Observatório de Política Fiscal da Fundação Getúlio Vargas, analisou a concentração de renda no topo da pirâmide social brasileira entre 2017 e 2022. Procurou pesquisar se o Brasil, que tem uma das maiores concentração de riqueza e de renda do Mundo, também teria um processo crescente de concentração dentro dessa concentração, como ocorreu em diversos países após 1980.


A sua conclusão geral: descontando a inflação pelo IPCA nesse período que foi de 31,4%, o aumento acumulado da renda real entre os mais ricos chegou a 49%, enquanto entre os mais pobres (e a classe média), o aumento foi de apenas 1,5% em média. Identifica, pois, a concentração de renda no topo da pirâmide social, destacando-se:  


  • A renda da elite econômica do 0,01% da população cresceu nominalmente 96% no período de cinco anos – quase três vezes mais do que a registrada na base da pirâmide de 33% (a qual inclui 95% da população adulta), que permaneceu semi-estagnada em termos reais, enquanto a dos mais ricos cresceu a um ritmo chinês; 

  • Em 2022, a base de pirâmide é formada por todos os adultos que tiveram renda líquida total inferior a R$10mil mensais; 


A renda da elite cresceu mais nas Unidades da Federação nas quais o agronegócio predomina na base da economia e que é, atualmente, o setor produtivo mais dinâmico da economia brasileira, chegando a uma alta, em valores reais, de 131% no Mato Grosso do Sul no extrato social constituído pelo 0,01% mais rico. Depois do Mato Grosso do Sul, as maiores taxas de expansão para o mesmo segmento populacional foram verificadas acima da inflação em:  


  • Amazônia (122%) 

  • Mato Grosso (115%) 

  • Rondônia (106%) 

Sérgio Gobetti refez as mesmas estimativas por Unidade Federada para o extrato constituído pelos 0,1% da população. Alguns resultados em destaque: 


  1. em média, a renda desse grupo populacional cresceu 42% em termos reais, um pouco abaixo do 0,01%; no Mato Grosso, o crescimento real dos rendimentos dessa “elite econômica” chegou a 117%, seguido pelo Mato Grosso do Sul (99%), Amazonas (84%) e Tocantins (78%). 

  1. A razão entre a renda média dos mais ricos e da classe média, em 2022, foi 364 vezes no Mato Grosso, 331 em São Paulo, 268 no Paraná, 257 no Mato Grosso do Sul. 

  1. A Região Nordeste, em 2022, detinha 27% da população total do Brasil, mas concentrava 43,5% do total da população na pobreza e 54,6% do total da população na extrema pobreza; 

  1. o Estado em que a elite (0,01%) teve o pior desempenho foi o Ceará (-9% em valores reais), seguido por Pará e Rio de Janeiro. 



Nas análises de Sérgio Corbetti da FGV, além de destacar a concentração da renda no topo da pirâmide, outros indicadores sobre a pobreza e as desigualdades sociais no Brasil merecem ser mencionados:  


a. o percentual de pessoas em situação de pobreza caiu de 36,7% em 2021, para 31,6% em 2022, enquanto a proporção de pessoas em extrema pobreza caiu de 9,0%para 5,9% neste período;  


b. em 2022, havia 67,8 milhões na pobreza e 12,7 milhões na extrema pobreza; frente a 2021, esses contingentes recuaram 10,2 milhões e 6,5 milhões de pessoas, respectivamente;  


c. em 2022, entre as pessoas com até 14 anos de idade, 49,1% eram pobres e 10% extremamente pobres;  


d. as pessoas pretas ou pardas representavam mais de 70% dos pobres e dos extremamente pobres;  


e. duas em cada cinco mulheres pretas ou pardas estão na pobreza.


 

Fica evidente que, embora a economia brasileira se situe entre as dez maiores do Mundo, a sociedade está dividida pela renda, pela riqueza e pelas oportunidades. 

 

Para saber para onde estamos indo em termos de concentração de renda, dos níveis de pobreza, de extrema pobreza e de desigualdades sociais, temos que avaliar se as políticas macroeconômicas e as políticas sociais em andamento estariam tendo a intensidade, a cadência e o sequenciamento necessários para promover grandes transformações e mudanças estruturais na evolução da sociedade brasileira1Intensidade, cadência e sequenciamento constituem atividades de programação que aparecem nas etapas de implementação, quando os objetivos dessas políticas efetivamente acontecem. Muitos planos programas e projetos tendem a fracassar por desconhecerem que essas atividades, as quais compõem os parâmetros de uma Rede de Precedência, delimitam o tempo ótimo (tempística) para a sua realização. Planejadores têm ficado, em geral, nas diretrizes e objetivos gerais com baixo grau de implementabilidades.  


Intensidades diferentes de execução de projetos, em função da disponibilidade de recursos ou do grau de mobilização dos atores e protagonistas públicos e privados, podem provocar efeitos não esperados, descontinuidades ou até rupturas nos processos de implementação descontinuadas.


Por exemplo: experiências recentes de arranjos produtivos locais (APLs) ou até mesmo rupturas nos processos de implementação de turismo no Nordeste Brasileiro, que pretendem gerar emprego e renda em localidades específicas com valioso capital natural (no contexto do PRODETUR), podem estimular a migração de seus recursos humanos escassos e potencialmente empreendedores, se a intensidade do seu componente de treinamento e de capacitação for maior do que os investimentos na rede de hospedagem e em sua promoção onde serão geradas as novas oportunidades de emprego e renda. 


Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2021, ao avaliar as experiências das políticas propostas pelo FMI e pelo Banco Mundial para países emergentes, afirma que programas bem sucedidos requerem cuidado extremo no sequenciamento – a ordem em que os programas ocorrem – e no seu cadenciamento. “Se, por exemplo, os mercados são abertos para concorrência muito rapidamente, antes que sólidas instituições financeiras sejam estabelecidas, então empregos são destruídos mais rapidamente do que novos empregos são criados.

Em muitos países, erros no sequenciamento e no cadenciamento levam a desemprego crescente e a maior pobreza”. 


O sequenciamento, o cadenciamento e a intensidade das ações de um plano ou de um projeto compõem os parâmetros básicos da sua Rede de Precedência. A construção de uma Rede de Precedência envolve não apenas a organização e a gestão de um cronograma físico-financeiro do plano ou projeto, mas a definição de critérios que possibilitem executá-lo no tempo ideal, com os melhores resultados possíveis. A desconsideração desses componentes da Rede de Precedência tem sido um dos fatores mais relevantes para explicar o fracasso na implementação de muitos planos, programas e projetos no Brasil.

 

Para avaliar a efetividade das políticas públicas na erradicação da pobreza e na redução das desigualdades sociais no Brasil, utilizaremos como referência as obras recentes de três cientistas sociais: 


  • Julia Lynch – Regimes of Inequality: The Political Economy of Health and Wealth - Cambridge University Press, 2020. 


  • Walter Scheidel – The Great Leveler – Violence and the History of Inequality – Princeton University Press, 2018.  


  • Thomas Piketty – Capital and Ideology – Harvard University Press, 2020; acompanhado de After Piketty – The Agenda for Economics and Inequality, edited by Heather Boushey, J. Bradford Delong and Marshall Steinbaum, Harvard University Press, 2017; que analisaram o livro de Piketty “Capital in the twenty–first century. 

São autores que avaliaram as políticas sociais em diversos países a partir da efetividade da sua implementação em múltiplos períodos históricos, normalmente articulando-as com as políticas macroeconômicas ou setoriais prevalecentes. As reflexões serão elaboradas em função da necessidade de se superar a atual crise social no Brasil, conforme os indicadores de pobreza e de desigualdades sociais apresentados. 



OS LIMITES DAS POLÍTICAS SOCIAIS COMPENSATÓRIAS


 

Desde a elaboração da Constituição de 1988, foram destacados os direitos sociais dos brasileiros. O Art. 6º define como direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. A partir da sua promulgação, nos anos seguintes, foram sendo concebidas e implementadas políticas públicas que deram vida a esses objetivos gerais, entre os quais se destaca a organização de um sistema de saúde universal e gratuito (o SUS). 


Entre as políticas públicas, foram se estruturando as políticas sociais compensatórias que ampliaram o número de brasileiros beneficiados pelo Bolsa Família, pela Lei Orgânica de Assistência Social , pela Previdência Social, chegando atualmente em um total de 35 milhões de pagamentos por mês pelo Governo Federal, através dessas políticas. 

Sérgio Gobetti mostra que: “a participação dos benefícios de programas sociais no rendimento domiciliar das pessoas em situação de extrema pobreza chegou a 67% em 2022, já a renda do trabalho foi responsável por apenas 27,4% do rendimento do grupo...entre os domicílios considerados pobres, o rendimento de benefícios de programas sociais chegou a 20,5% do total do rendimento”. 


Sem dúvida, é extremamente importante a política social de transferência final de rendas para a composição da renda das pessoas muito pobres, sendo essa importância igualmente relevante na composição da renda da população pobre. São utilizados os parâmetros do Banco Mundial de US$2,15/dia para a extrema pobreza e de US$ 6,85/dia para a pobreza em termos de Paridade de Poder de Compra (PPC) a preços internacionais de 2017. Essas políticas tiveram o mérito de evitar que a população dos grupos sociais D e E mergulhasse em um patamar de pobreza típica de alguns países da África como a Somália, Burundi ou Sudão do Sul. 

 

As políticas sociais Compensatórias são, contudo, limitadas tanto para a erradicação da miséria e da pobreza, assim como para a redução das desigualdades sociais. Falta-lhes intensidade e cadenciamento por causa da crise fiscal que o Brasil vivencia; e, também, é restrita à sua contribuição para transformar o regime de desigualdades prevalecente no País. 


Julia Lynch, cientista política da Universidade da Pennsylvania, mostra em seu livro resultados de inúmeras pesquisas sobre as desigualdades resilientes na saúde e na riqueza, que, desde 1990, os partidos políticos dominantes na Europa “fracassaram em tratar do problema da desigualdade, resultando numa reação política e na transformação dos sistemas partidários”. Ela critica a métrica usual da desigualdade econômica em um país a partir apenas da participação engrandecida do 1% ou do 0,01% no topo da pirâmide na distribuição de renda, a qual tem sido dramática nos EE.UU. e no Reino Unido, mas, também, desde 1980, em outras democracias industrializadas. 


Propõe que se quisermos compreender porque a desigualdade é tão resiliente, deveríamos considerar os regimes de desigualdades e não apenas a desigualdade da renda ou da saúde (ou qualquer outro indicador socioeconômico) de forma isolada e específica. Um regime de desigualdades tem dois atributos: interdependência e institucionalização.


Interdependência se refere à estreita conexão entre as múltiplas manifestações das desigualdades e os indutores (drivers) prevalecentes das várias formas de desigualdades. 


Institucionalização se refere às mudanças de regimes que emergem da tendência das novas formas de organização social para replicar aspectos importantes das velhas formas que pretendem substituir. Conclui que múltiplas manifestações de desigualdades se combinam para reforçar entre si (não apenas a desigualdade econômica) e as características dos Estados do Bem–Estar Social avançados. 

 

Em resumo: Julia Lynch propõe que uma política social de transferência fiscal de renda pode atender a uma das necessidades humanas (a necessidade de alimentação, fome zero etc.) sem abalar ou desestruturar o regime das desigualdades dominantes. Alguns indicadores de desigualdades, quando calculados isoladamente, podem quantificar resultados específicos de melhoria da renda domiciliar per capita  mas não a prevalência dos regimes de desigualdades. Um contexto social e político que se torna mais complexo quando nele se adiciona a atual crise fiscal que abala os três níveis de governo.     

 

CRISE FISCAL 


Em geral, quase todas as políticas sociais previstas no Art. 6º da Constituição de 1988 têm como fonte de fundos os orçamentos anuais e plurianuais dos três níveis de governo, principalmente do Governo Federal. Ocorre que, nas duas últimas décadas, há uma crise fiscal em andamento, a qual se manifesta através dos déficits fiscais no Brasil. Enquanto nos países da Europa os déficits fiscais tiveram origem na conjuntura desfavorável provocada pela crise econômica e financeira de 2008 e pela crise da pandemia da COVID-19, no caso brasileiro a crise fiscal é de natureza histórico-estrutural. 

A  explicação pode ser analisada por etapas:  


1. a partir da Constituição de 1988, foram se formulando e implementando as diferentes políticas públicas econômicas, sociais e ambientais que começaram a pressionar intensa e legitimamente os gastos públicos de custeio e de investimentos; 


2. de 1980 a 2023, a desaceleração do crescimento do PIB e da Renda Nacional impactou negativamente a base tributária da economia, gerando um ritmo de expansão das receitas bem mais lento do que o avanço acelerado das despesas públicas; 


3. desapareceram os mega superávits primários dos anos 1970 e os déficits fiscais consolidados passaram a constituir uma realidade dramática na vida dos brasileiros, principalmente neste século 21; 


4. quando possível, esse descompasso entre receitas e despesas públicas era financiado pela expansão do endividamento até chegarmos nos dias de hoje, com uma relação dívida /PIB de 80%; 


5. como a maioria das despesas públicas está vinculada a algum setor da Administração (educação, saúde, FPM, FPE, etc.), a alguma atividade (políticas sociais compensatórias) ou algum compromisso (serviços da dívida pública), os recursos livres para serem alocados são relativamente escassos (não mais do que 10 % de todas as receitas) e visivelmente insuficientes para atender a avalanche de demandas que advêm dos programas, projetos e atividades das políticas públicas; 


6. o resultado final desse imbróglio é a perda de qualidade dos serviços públicos tradicionais, a insuficiência de recursos para financiar serviços meritórios ou semipúblicos essenciais e a limitada capacidade de financiamento dos investimentos em ampliação, manutenção e modernização da infraestrutura econômica e social do País;

 

7. não faltarão economistas para racionalizar argumentos de que o Estado gasta demais e ineficientemente, daí a necessidade de cortes recorrentes sem perda da efetividade de suas funções tradicionais futuras. 


Assim, além das políticas sociais compensatórias não terem a intensidade, a cadência e o sequenciamento necessários para promover com eficiência e eficácia os seus objetivos, têm que conviver com as incertezas dos cortes de gastos programados e dos financiamentos incertos dos PPAs. Winston Churchil já dizia que os sonhos dos planejadores morrem nos orçamentos. 

 

As políticas sociais compensatórias não têm uma dimensão ou escala com capacidade político- institucional para uma Grande Transformação dos regimes de desigualdades no Brasil. Embora tenham a capacidade de atender a algumas das necessidades fisiológicas da população pobre e extremamente pobre da sociedade brasileira, essas políticas são de natureza reformista incremental e não de natureza reestruturante da sociedade, com baixo grau de interdependência entre as diferentes políticas múltiplas em seu escopo. Padecem também das incertezas de financiamento público do custeio e do investimento em um País que convive com uma crise fiscal no século 21. 

 

UMA NOVA POLÍTICA ECONÔMICA ANTES DA MEIA-NOITE 


A atual política econômica de estabilização monetária, denominada de modelo de equilíbrio fiscal expansionista, tem por objetivo zerar o déficit fiscal apoiada nas reformas tributária, previdenciária e administrativa, com a expectativa de que, após os ciclos de ajustes macroeconômicos, a retomada do crescimento econômico virá por acréscimo conduzida pela mão invisível dos mercados. Essa política econômica tem encantado grupos de lideranças tanto de centro-direita quanto de centro-esquerda, o que vem ocorrendo desde 2014. 


Nesse contexto, a gestão orçamentária se processa para evitar um tipping point, sendo a alocação dos recursos fiscais  orientada para atender, ainda que parcialmente, a avalanche de demandas, as quais seguem a trajetória de crises localizadas, fazendo um pouco de cada ação programática para evitar crises abertas mais abrangentes (greves, fome, protestos de rua, colapso administrativos, etc.). E a gestão orçamentária vai se processando através de decisões de gastos ad hoc, muitas vezes insuficientes (en miette) para atingir resultados finalísticos, o que nos leva a pensar em um eventual desencantamento com a atual política econômica antes da meia noite, como Cinderela. 


Há no Brasil, atualmente, um grande número de pessoas muito insatisfeitas com o estado geral da Nação. Não se trata apenas de uma insatisfação latente e difusa, que está presente usualmente na existência de cada um de nós. É, na verdade, uma insatisfação que deriva objetivamente das condições materiais de vida do dia a dia e que impacta o atendimento das  necessidades básicas e aspirações. Aquela insatisfação que, quando amanhece o dia, desperta com as pessoas e as acompanha ao longo de todo o dia. 


Há insatisfação com a qualidade dos serviços públicos, principalmente nas áreas de saúde, transporte coletivo e segurança. Há insatisfação com as incertezas sobre o futuro da economia e do orçamento familiar, assim como em relação à evolução do campo de oportunidades para os jovens. Mas, a insatisfação maior se concentra nos mercados de trabalho, onde as pessoas realizam os seus projetos profissionais e ganham os seus rendimentos para a provisão de uma vida humana civilizada.  


Se a intensidade da insatisfação é tão grande e espraiada entre diferentes grupos sociais brasileiros, indaga-se: até quando continuará presente, sem que haja pontos de ruptura no tecido social e político? William Nordhaus, Prêmio Nobel de Economia em 2018, afirma que, quando um sistema experimenta uma profunda descontinuidade no seu comportamento, pode ocorrer um ponto de inflexão ou de ruptura (tipping point), e que o tempo exato e a magnitude de tal evento são quase sempre impossíveis de predizer; podem ocorrer rapidamente e inesperadamente ou até mesmo não ocorrer.  


Se, eventualmente, vier a ocorrer algum ponto de manifesta ruptura no atual contexto de homeostase política, através de mobilizações de protestos da sociedade civil, é provável que  não venham dos 35 milhões de brasileiros que sobrevivem, ainda que a duras penas, das políticas compensatórias, nem da minoria de rentistas que se enriquece à sombra do capitalismo financeiro. É provável que venham dos 30 por cento dos jovens desempregados, que assistem à interrupção de suas esperanças e oportunidades.  

 

A homeostase pode ser definida como a habilidade de manter o meio interno em um equilíbrio quase constante, independentemente das alterações que ocorram no ambiente externo. Para manter a homeostase, o meio interno deve manter certos valores sem alterações. Os processos de mitigação, de compensação e de transformação político-institucionais garantem que, de forma coordenada, o equilíbrio interno entre os conflitos de interesse da sociedade venha a acontecer sem choques de descontinuidades no status quo

O Brasil vive, atualmente, uma fase de homeostase econômica, ou seja, há uma tendência auto-reguladora do organismo econômico que permite manter pelo menos o estado de equilíbrio interno de seus grupos de interesse de maior vocalidade política (os rentistas, os movimentos sociais, etc.), ou porque estão usufruindo das supertaxas de juros reais ou porque estão conformados com as benesses distributivas das políticas sociais compensatórias.  

 

Não se trata de subestimar a necessidade indispensável de uma política macroeconômica consistente e rigorosa como vem sendo conduzida, atualmente, no controle das contas consolidadas dos três níveis de governo para evitar um processo de “argentinização” da nossa economia no longo prazo.

Afinal, cada vez que a taxa de inflação decresce, equivale a uma devolução do imposto de renda pela redução do imposto inflacionário para os grupos sociais de baixa renda. O que se sugere não é nenhuma mudança significativa ao ajuste da macroeconomia do País, mas acoplar e integrar uma política de desenvolvimento sustentável.  


Entretanto, não se pode esperar que uma política de estabilização monetária, além de manter a taxa de inflação dentro da meta, possa promover um ciclo de expansão econômica e superar os nossos problemas socioeconômicos e socioambientais estruturais, enraizados no tempo e no espaço da sociedade brasileira.

Entre esses problemas, destaca-se os da pobreza e das desigualdades sociais na distribuição da renda e da riqueza nacional. 

Walter Scheidel, historiador austríaco que ensina História Antiga na Universidade de Stanford (Califórnia), analisou a evolução das desigualdades sociais e econômicas desde o período da Idade da Pedra (fase da Pré-História) até o século 21. A tese principal do seu livro pode ser resumida em dois principais argumentos: 


  1. Durante milhares de anos, a civilização não nos levou a uma equalização pacífica; no amplo conjunto de sociedades e diferentes níveis de desenvolvimento, a estabilidade favoreceu a desigualdade econômica, do Império Romano aos Estados Unidos; choques violentos foram de imensa importância para a ruptura da ordem estabelecida, ao comprimir a distribuição de renda e de riqueza, reduzindo o hiato entre ricos e pobres; ao longo da história conhecida, os mais poderosos nivelamentos invariavelmente resultaram dos mais poderosos choques; 

  2.  Destaca quatro diferentes tipos de choques ou rupturas violentas que resultaram na descompressão na distribuição de renda e da riqueza: A. a mobilização da sociedade em seu conjunto para as grandes guerras (como na 1ª e na 2ª Guerras Mundiais) que levam à tributação confiscatória, à intervenção do governo na economia, à inflação, à ruptura dos fluxos globais de bens e de capitais e a outros fatores que combinados destroem a riqueza das elites e redistribui os seus recursos; B. as revoluções transformadoras (Revolução Francesa, Revolução Russa) com o seu dramático impacto equalizador; C. colapso do Estado que desestrutura a posição da elite mais rica e melhor posicionada no topo da hierarquia do poder político (Somália, como exemplo), D. as pandemias letais, que poderiam agir como mecanismos pacíficos de redução das desigualdades. 


Podemos elaborar uma reflexão sobre o que Scheidel denomina os Quatro Cavalheiros do Apocalipse (Guerra, Revolução, Colapso e Pandemia) em função das experiências históricas do Brasil em anos mais recentes. Nesse caso, cabe uma reflexão com foco nos impactos distributivos da pandemia da COVID-19 sobre as desigualdades sociais e o empobrecimento da população brasileira. 


Embora Walter Scheidel tenha dado especial atenção à investigação sobre a devastadora Peste Negra, com mortes estimadas que variaram de 50 a 200 milhões de pessoas durante o século XIV na Eurásia, dedicou sua análise também para outras experiências históricas de pandemias.

Como as epidemias são consideradas um fenômeno recorrente da história mundial, deixaram-nos algumas lições sobre as questões econômicas e sociais que emergem ao final de seu ciclo.  


Entre essas lições, destaca-se que em todas elas ocorreram:  


1. a extraordinária perda de milhares ou milhões de vidas;  


2. sacrifícios inusitados no bem-estar social das populações e no atendimento de suas necessidades básicas;  


3. empobrecimento generalizado das sociedades, com queda persistente da renda e do emprego;  


4. intensificação dos conflitos distributivos da renda e da riqueza entre os diferentes grupos sociais;  


5. a eliminação, ao longo do tempo, pelas estruturas institucionais prevalecentes, da descompressão das desigualdades sociais através do nivelamento das perdas.  


Mas, a principal lição da história se refere à constatação de que as cicatrizes econômicas e sociais das mazelas pós-pandemias serão mais ou menos profundas dependendo do contexto histórico de três fatores: o estado geral da nação no período pré-pandemia; a intensidade e a duração da fase das contaminações e das mortes; o conjunto de ações e intervenções de natureza mitigatória e compensatória das autoridades estabelecidas.  

No caso brasileiro, o período pré-pandemia já não era nada favorável. A economia crescia lentamente; o número de pobres e miseráveis posicionava o Brasil como o sétimo país mais desigual no Mundo; o número de desempregados, subempregados e desalentados chegava a 28 milhões; o percentual das famílias brasileiras endividadas era superior a 65 por cento.

Vale dizer, um ponto de partida com elevado passivo social, ao qual iria se somar a degradação dos indicadores de desenvolvimento humano durante o ciclo da pandemia. 


Felizmente, durante esse ciclo, a situação socioeconômica dos brasileiros tornou-se menos dramática pois, além da preservação ainda que parcial das políticas sociais compensatórias, foram incrementados auxílios emergenciais trabalhistas e de financiamentos favorecidos do Governo Federal. Apesar de tudo isso, mazelas adicionais das desigualdades não deixaram de emergir para os pobres através dos problemas nas áreas de alimentação, educação, saúde. 


O capitalismo no Brasil vem, desde o período escravocrata, se caracterizando como um caso histórico de desigualdade social extrema. Utiliza-se a, expressão “loteria da vida” para ilustrar, como a nossa mobilidade social e econômica ainda é baixa, o sucesso das pessoas na vida é basicamente determinado no momento do nascimento por fatores como renda, cor da pele, região e nível de educação dos pais.  


Mesmo quando se acumulam distorções econômicas, mazelas sociais e colapsos institucionais em um ciclo das reformas de base de uma geração, como ocorreu a partir da Constituição de 1988, as novas gerações que concentram os benefícios e os privilégios resultantes daquelas reformas acabam se tornando conformistas e resistem a promover as mudanças indispensáveis utilizando o seu poder político.  


Enfim, estamos em uma sociedade que, nos anos recentes, tem optado por movimentos reformistas sem choques de rupturas, onde se torna inadiável haver uma renovação de ideias e de experiências, um rejuvenescimento do capitalismo com a emergência de uma geração de empreendedores inovadores e uma grande transformação na distribuição da renda e da riqueza nacional que se acumula, sem a necessidade do lamento melancólico e da complacência dos que vão nos suceder.  

 

O QUE FAZER? 


A COMPLACÊNCIA NEOMALTHUSIANA

 

Em 1798, o Reverendo Robert Malthus analisou a questão do desequilíbrio entre a expansão geométrica da população e o crescimento aritmético da produção de alimentos como uma causa inevitável da miséria de algumas classes mais pobres da sociedade. Embora tenha apresentado obstáculos positivos e obstáculos preventivos que pudessem atenuar esse desequilíbrio, acreditava que o reequilíbrio se daria pelas condições de miséria, fome e morte, que se deterioravam pela insalubridade nas moradias e nos locais de trabalho, que facilitavam a propagação de epidemias e de pestes.  


A história mostrou que suas projeções estavam equivocadas tanto em termos de taxas de mortalidade e de natalidade quanto na subestimativa do gigantesco progresso tecnológico da agropecuária ao longo do século 20. No entanto, os seus argumentos sinistros reaparecem em situações de grandes crises socioeconômicas e socioambientais, criando uma desconfiança quase fatalista e ingênua de que, em determinados contextos, alguns resultados catastróficos são inevitáveis. Essa desconfiança está presente entre aqueles que não acreditam na capacidade das políticas públicas sociais e ambientais para reverter o avanço de desastres ou colapsos nos sistemas humanos e nos sistemas naturais. 


Para Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia em 1998, o desenvolvimento é um processo de criação de oportunidades para que as pessoas possam realizar os seus projetos de vida. Em uma economia de baixo crescimento com ciclos frequentes instabilidades econômicas, como é o caso do Brasil nos últimos quarenta anos, o processo prevalecente tem sido o de destruição de oportunidades. Segundo o IBGE, a taxa de desemprego entre os jovens de 18 a 24 anos tende a ser superior ao dobro da taxa geral, o que aborta muitas esperanças da juventude no futuro do País.  


Desse contexto, em que prevalecem taxas abissais no tripé das desigualdades de renda, de emprego e de oportunidades, algumas lições podem ser apreendidas a partir das experiências históricas de diversos países de economias de mercado, onde fica evidente o poder transformador de políticas públicas de caráter distributivo: 


• As economias de mercado que apresentam melhor desempenho econômico sustentado são as que têm os melhores indicadores de igualdades sociais.  


• Políticas econômicas que aumentam as desigualdades sociais resultam em menor crescimento econômico; o tamanho do mercado interno depende do tamanho da população, da produtividade total e da distribuição da renda e da riqueza;  


• As economias de mercado que têm piores indicadores de desenvolvimento social sustentável são as economias com pior distribuição de renda e de riqueza, independentemente do seu nível de desenvolvimento. 


• Políticas públicas bem concebidas e implementadas têm a capacidade de reduzir sensivelmente o número de pobres e de miseráveis de um país ou de uma região, ou seja, o melhor cenário é aquele que construímos;  


• Economias de mercado que se envolveram em processo excessivos e dominantes de financeirização têm os seus níveis do tripé de desigualdades acentuados (desigualdades de renda, desigualdades de riqueza e desigualdades de oportunidades); 


• As economias capitalistas que progridem mais e melhor sempre realizaram uma inteligente combinação de mercado e governo, de tal forma que não se trata de mercado ou governo, mas de combinar ambos para maior benefício da sociedade, através de processos de planejamento indicativo. 


Como avaliar o sistema capitalista brasileiro do ponto de vista de uma Grande Transformação para superar os problemas estruturais do País? Como ampliar o campo de oportunidades dos jovens que vêm se graduando em um sistema educacional de acessibilidade cada vez mais democrático? Como erradicar a pobreza extrema e atenuar a distribuição da renda e da riqueza? 


Avaliar um sistema econômico significa observar, através de diferentes indicadores socioeconômicos e socioambientais, como o sistema está resolvendo os problemas fundamentais de desenvolvimento sustentável de uma sociedade. Essa observação não pode ser realizada apenas sobre indicadores de curto prazo (taxa de inflação, déficit fiscal, etc.), pois o sistema pode sempre sofrer ajustes fiscais e financeiros para superar as questões de conjuntura. Uma das características do capitalismo após o longo período do pós-II Grande Guerra, marcado por um longo ciclo de crescimento com estabilidade monetária até o início dos anos 1970, tem sido uma sequência de ciclos de instabilidades econômicas e financeiras3.   


No Brasil, o capitalismo tem se mostrado incapaz de resolver alguns dos problemas que são usualmente denominados de estruturais. O seu equacionamento não ocorre apenas através de medidas transitórias e voluntaristas, mas é preciso que nasça da consciência política de lideranças propensas a conceber e a implementar grandes transformações. Essas transformações nascem da interrelação de ideias renovadas, de interesses iluminados e de instituições flexíveis e dinâmicas, geralmente estruturadas em políticas públicas sob a liderança de estadistas que vislumbram o horizonte de uma nação além do jogo político cujo principal objetivo é a manutenção e a preservação do poder para sustentar os interesses de sua base aliada.  


São necessárias lideranças como a do Presidente JK que, sem otimismo ingênuo, baseava o seu mandato presidencial “na manifestação inequívoca de fé na capacidade realizadora dos brasileiros, no triunfo do espírito pioneiro, na prova de confiança na grandeza do Brasil, na ruptura completa com a rotina e o compromisso”. 


As fragilidades do capitalismo brasileiro em muitos contextos são semelhantes às experiências históricas do capitalismo norte-americano ou europeu. Em outros, são específicas do nosso subdesenvolvimento político e do caráter emergente do nosso progresso econômico e social. Essas fragilidades se tornam visíveis em assimetrias e dissonâncias no processo de desenvolvimento do bem-estar social sustentável na vida dos brasileiros. 


Incapacidade para equacionar o problema da pobreza persistente e para reverter um processo de crescentes desigualdades sociais na distribuição da renda e da riqueza. Incapacidade para conter o uso predatório da base de recursos ambientais do País. Incapacidade para eliminar a tendência de imiscuir interesses privados com interesses públicos na gestão governamental dentro do estilo de capitalismo de compadrio associado às práticas de corrupção. Incapacidade para controlar a vocação imanente entre protagonistas políticos para ações de populismo econômico que criam ciclos de instabilidade econômica que resultam quase sempre em elevadas taxas de desemprego, etc.  


Um dos problemas específicos do capitalismo no Brasil é a necessidade de se consolidar uma nova geração de empreendedores, inconformados com o status quo, que tenham o perfil cultural, a base ideológica e a sensibilidade política para lidar com os desafios contemporâneos de um mundo cada vez mais veloz, mais complexo e mais inextricável. Novos empreendedores com níveis de informação e conhecimento compatíveis com as inovações científicas e tecnológicas das revoluções industriais em marcha. E, ao mesmo tempo, compatíveis com uma cosmo visão indispensável para lidar, em seu planejamento estratégico, com as questões da sustentabilidade ambiental e da equidade social, em um país no qual as elites têm se tornado cada vez mais especulativas no campo econômico e impiedosas no campo socioambiental.  


A importância de se rejuvenescer o capitalismo, criando um campo de oportunidades para a emergência de uma nova geração de empreendedores econômicos, sociais e culturais, se exprime na reflexão de Keynes, escrita em dezembro de 1935: “A dificuldade não está nas novas ideias, mas em escapar das velhas, que se ramificam, para aqueles que foram criados como a maioria de nós foi, por todos os cantos de nossas mentes”. 


Thomas Piketty, Diretor de Estudos da École des Hautes Études em Sciences Sociales e Professor na Paris School of Economics, elaborou duas obras, que já se tornaram clássicas sobre os regimes de desigualdades na História, combinando análises e pesquisas de historiadores, sociólogos, cientistas locais.

Ao se pensar em um processo de Grande Transformação da economia brasileira, que não se limita a ajustes incrementais de curto prazo, a leitura dos textos de Thomas Piketty é fundamental para avaliar as experiências históricas e ideológicas sobre como diferentes países  em diversos momentos históricos, conseguiram superar suas crises econômicas e regimes de desigualdades. 

Pode-se afirmar que as obras de Piketty, além da construção de uma agenda histórica das relações dos sistemas econômicos com os regimes de desigualdades, culminando com propostas para a organização de experiências do socialismo participativo no século 21, trouxe novas luzes às controvérsias prevalecentes com a incorporação das análises de historiadores, sociólogos, cientistas políticos. Essa incorporação levou os editores do livro “After Piketty” a destacar uma reconciliação entre a Economia e as demais Ciências Sociais, particularmente quando se discutem as relações entre a acumulação de riquezas financeiras e não financeiras e os seus impactos nas estruturas do poder político. 


Esses impactos permitem que se imponha uma alternativa a um modelo de política econômica que melhor atende os interesses dos grupos sociais mais bem aquinhoados no topo da pirâmide, acobertados por racionalizações acadêmicas, segundo as quais a concentração da renda e da riqueza de uma sociedade é favorável à acumulação de capital social, ao aumento não inflacionário da demanda agregada e ao bem-estar social de todos direta ou indiretamente. 


No caso brasileiro, o principal desafio no atual momento histórico, é o de retomada do crescimento acelerado da economia brasileira a uma taxa necessária em torno de 5% ao ano. Com esse ritmo de crescimento sustentado, será possível equacionar alguns problemas conjunturais e estruturais a partir da formação ampliada de um excedente econômico que facilitará a geração de renda e de emprego, com aumento da base tributável. 


De 2002 a 2022, a taxa média de crescimento do PIB no Brasil foi de apenas 2,2%. Quando se leva em conta que a taxa média geométrica de crescimento da população residente por ano está em torno de 1,67%, fica claro que é insignificante o aumento da quantidade de bens e serviços finais produzidos que a economia semi-estagnada colocou à disposição do bem-estar social sustentável dos brasileiros no século 21. Esse baixo crescimento da economia acaba contaminando o crescimento da Renda, do Emprego da base tributável. 


Desde os anos 1990, ocorreram, de fato, alguns anos não sequenciais em que a taxa de crescimento girou em torno de 5% ao ano: no fim do imposto inflacionário com a recomposição do poder de compra da massa salarial a partir do bem sucedido Plano Real; com o boom dos preços das commodities na economia globalizada no período da pré-crise mundial de 2008; com o renivelamento do emprego e da renda após a crise econômica e financeira da pandemia da Covid-19 quando, em 2020, a taxa de crescimento foi negativa (-3,3%) para se recuperar nos dois anos seguintes. Foram, pois, espasmos de crescimento e não ciclos de expansão sustentada da economia. 


Há uma taxa mínima de crescimento da economia brasileira que é indispensável para que sejam atingidos três objetivos, simultânea e complementarmente. O primeiro objetivo é manter um ritmo adequado do nível de emprego de qualidade e estável, capaz de acomodar quase dois milhões de brasileiros que se mobilizam e se reposicionam anualmente nos diferentes mercados de trabalho.

O segundo objetivo é gerar um excedente econômico, de maior magnitude e recorrência, de investimentos crescentes para a recuperação e a modernização de nossa infraestrutura econômica e social, e que permita financiar as necessidades crescentes das políticas sociais compensatórias visando a atenuar os índices de pobreza e de miséria social, e eventuais tensões sociais e políticas em nosso País.

Finalmente, essa taxa tem a função de manter acesa a chama do que Keynes denominava “o espírito animal” dos nossos empreendedores efetivos ou potenciais, além de uma expectativa recorrente de confiança no nosso progresso econômico e social, a partir de programas e projetos de investimentos que aumentem significativamente a produtividade total dos fatores nos setores produtivos mais significativos.  


 Há necessidade de se conceber e implementar um novo ciclo de expansão da economia brasileira que poderia ser considerado um “big push”. Há várias propostas para se estruturar um big push: a substituição de importações nas indústrias de bens de capital e de bens duráveis de consumo e de energia relacionados com as mudanças climáticas; a promoção de projetos integrados de Bioeconomia; um programa de New Deal Verde, etc. Uma ideia-força que apresenta as características de ser cientificamente consistente, operacionalmente exequível e historicamente realista, é a de transformar o Brasil no maior produtor de alimentos (proteína vegetal e proteína animal) do Mundo;

Trata-se de uma estratégia que pressupõe um novo ciclo de inovações cientificas e tecnológicas na fronteira dinâmica do País, assim como uma nova estratégia de transporte e de comunicação, incluindo o acesso direto aos crescentes mercados consumidores do Pacífico (Eixo Centro-Norte com saída pelo Peru e o Eixo Sul-Sudeste com saída pelo Chile).

Dada a escala necessária dos investimentos públicos e privados para a construção sociopolítica do novo ciclo de expansão, será indispensável a cooperação técnica e financeira de um país como a China ou o Japão, em um modelo organizacional semelhante ao que viabilizou os Projetos Carajás, PRODECER, nos anos de 1970, com a cooperação do Japão. 


Atualmente, o agronegócio é o setor produtivo mais importante da economia brasileira e tem evitado que o quadro recessivo, iniciado em 2014, se transforme em depressão econômica. É o carro-chefe de poderosas cadeias produtivas e de valor que envolvem, direta e indiretamente, inúmeros setores produtivos, com impactos que se espraiam para a indústria química, a indústria de bens de capital, os setores de tecnologia e informação, o setor de transporte, etc. Contribui para intensa redução do custo da cesta básica, que beneficiou, principalmente, os grupos sociais de baixa renda, para os quais o peso das despesas com alimentos é maior. Utiliza diferentes sistemas de produção nas diversas regiões do País, desde as grandes plantações até a agricultura familiar, com elevado nível de competitividade sistêmica. 


O agronegócio não precisa desmatar para se expandir. Segundo pesquisadores da EMBRAPA, se conseguíssemos transferir 50% da tecnologia sustentável para a agricultura, seria possível dobrar a produção de alimentos sem abrir novas áreas e sem abater uma única árvore sequer. A moderna agropecuária do agronegócio e da agricultura familiar produz com menor intensidade de terra, consome menos água por tonelagem de produção irrigada, recicla os resíduos e os dejetos das atividades produtivas, além de conservar, preservar e reabilitar os ativos ambientais como patrimônio natural em suas propriedades privadas.  


Um ciclo de expansão como base para promover a Grande Transformação do Brasil no maior produtor mundial de alimentos faz todo sentido histórico do ponto de vista econômico. O agronegócio brasileiro dispõe de pelo menos três das pré-condições para alavancar um novo ciclo de crescimento de longo prazo:  


a) o Terceiro Salto da Agropecuária Brasileira, que vem se estruturando nos últimos anos sob a liderança do saudoso Ministro e Professor Alysson Paolinelli, se baseia nas cinco inovações schumpeterianas: a introdução de um novo bem (alimentos saudáveis, sustentáveis e resistentes às mudanças climáticas) ou de uma nova qualidade de um bem (estratégias empresariais de diferenciação de produtos); a introdução de um novo método de produção (agricultura de precisão, agropecuária de baixo carbono, plantio direto, etc.); abertura de um novo mercado (Sudeste Asiático, com a redução dos custos de acessibilidade); estabelecimento de uma nova fonte de matérias-primas ou de bens semimanufaturados (adensamento das cadeias produtivas de produtos passíveis de elevada replicabilidade); estabelecimento de uma nova organização de qualquer indústria (o modelo organizacional de clusters produtivos, com empresa-âncora, que permite a integração dos interesses da grande empresa com a pequena produção familiar); 


b) o moderno processo de desenvolvimento sustentável pressupõe que o País já dispõe de níveis adequados de capitais intangíveis (capital institucional, capital humano, capital sinergético, capital intelectual, etc.), o que é a condição necessária para que se promova um ciclo de expansão intensivo de ciência e tecnologia, a partir de um modelo de desenvolvimento endógeno dentro do estilo de planejamento participativo;  


c) a promoção econômica da produção de alimentos dentro dos padrões científicos e tecnológicos modernos tem a intensidade, o sequenciamento e a cadência de acumulação de capitais tangíveis e intangíveis necessários para o espraiamento em poderosas cadeias de valor (mínero-metalúrgico-mecânica, fármaco-químico, tecnologia de informação e conhecimento, etc.) e em regiões tradicionais de base econômica agropecuária consolidadas no Sul e no Sudeste ou nas regiões da fronteira dinâmica (Balsas no Maranhão, Oeste da Bahia, Sul de Rondônia, Gurguéia no Piauí, Centro-Norte do Mato Grosso, Rio Verde em Goiás, etc.); Os mercados mundiais de alimentos tendem a crescer geometricamente em função da expansão das demandas e das necessidades dos programas nacionais e internacionais de segurança alimentar. 


O Brasil precisa voltar a crescer através de um novo ciclo de expansão econômica que seria o terceiro pós-Segunda Grande Guerra (1º. Plano de Metas do Presidente JK; 2º. “milagre econômico” dos anos 1970). O start-up desse novo ciclo de expansão pode emergir de diferentes alternativas intersetoriais: substituição de importações e promoção de exportações da indústria relacionada com as mudanças climáticas, o New Deal Verde, a promoção de projetos integrados de Bioeconomia etc. Destaca-se também a transformação do Brasil no maior produtor mundial de alimentos para a Humanidade através das poderosas cadeias produtivas do agronegócio.    





"O artigo de Paulo Haddad encerra com maestria as ideias sobre o tema abordado, evidenciando sua habilidade em transformar questões complexas em insights acessíveis e inspiradores."

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