Paulo R. Haddad
“Tinha razão o Prelado, mas não basta ter razão; cumpre saber tê-la”
Machado de Assis
“O medo é, dos sentimentos humanos, o mais dissolvente, porque nos leva a fazer muita coisa que não queremos fazer e deixar de fazer muita coisa que queríamos e desejávamos fazer”
Josué de Castro
Em janeiro de 2025, 5.565 Prefeitos tomarão posse para novos mandatos de 4 anos. Irão se confrontar com inúmeros problemas socioeconômicos e socioambientais que variam de município por município de acordo com o tamanho de sua população, do seu nível de desenvolvimento, do Bioma em que se localizam, do grau de desigualdade de renda e de riqueza entre os diferentes grupos sociais, do número de desempregados, subempregados e desalentados na sua população economicamente ativa, etc. Quando examinarem as condições das finanças públicas locais, terão a sensação de que não há como resolver essas questões promovendo um processo de desenvolvimento sustentável e se limitarão à gestão administrativa das funções tradicionais da Prefeitura no dia a dia: cidades limpas, escolas e hospitais funcionando, etc.
Durante as quatro décadas em que trabalhei com equipes na busca de soluções para esses múltiplos problemas ou na gestão pública dos três níveis de governo ou como consultor, utilizei dois paradigmas de desenvolvimento local que se mostraram realistas e implementáveis, até mesmo em um difícil contexto de restrições e condicionalidades político-institucionais nos municípios, os quais foram arquitetados segundo o modelo de desenvolvimento endógeno dentro do estilo de planejamento participativo. As mudanças na vida dos municípios não ocorrem em um ambiente de conformismo e apatia social e o melhor cenário para os mandatos dos novos Prefeitos será aquele que construírem, desde que os habitantes deixem de ser apenas produtores e consumidores e assumam a sua cidadania.
DOIS PARADGMAS DE DESENVOLVIMENTO LOCAL E AS NOVAS ADMINISTRAÇÕES MUNICIPAIS
Os Prefeitos que serão eleitos e tomarão posse em janeiro de 2025 enfrentarão muitos problemas socioeconômicos e socioambientais nos municípios durante a sua gestão administrativa. A trajetória ideal seria se conseguissem se organizar para implementar em seus municípios os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, com os quais o Brasil se comprometeu em setembro de 2015, juntamente com os demais Estados e Municípios e repactuados na Assembleia da ONU deste ano. Alguns municípios do Sul e do Sudeste têm ordenado os seus planos diretores a partir dos 17 ODS, os quais correspondem também aos resultados de pesquisas de opinião pública do estilo “em qual cidade você gostaria de viver?”
Para fins de elaboração e implementação dos planos de desenvolvimento local, uma questão pivotal é a de que as administrações municipais não dispõem dos instrumentos fiscais, monetários e regulatórios para fazer acontecer os objetivos de desenvolvimento. Como não controlam instrumentos econômicos e mecanismos institucionais, tendem a limitar a sua gestão em garantir um bom desempenho administrativo, durante os quatro anos de seus mandatos, na prestação dos serviços tradicionais que lhes são atribuídos dentro do Pacto Federativo (limpeza urbana, boas escolas e bons sistemas de saúde, transporte coletivo, segurança pública).
Entretanto, a maioria dos municípios brasileiros tem algum problema de baixo nível de crescimento da renda e do emprego, de desigualdades na distribuição da renda e da riqueza, de degradação dos ecossistemas locais.
O caso mais grave é o dos 1.700 municípios que estão localizados nas áreas economicamente deprimidas do País: no Sertão e no Agreste do Nordeste, nos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, no Norte de Minas, em quatro microrregiões do Vale do Rio Doce, em áreas desmatadas da Amazônia, entre outras. Em geral, as famílias dessas áreas sobrevivem graças às políticas sociais compensatórias do Governo Federal (Lei Orgânica de Assistência Social - LOAS, Bolsa-Família, Previdência Social) e as suas Prefeituras, graças à transferências fiscais do Governo Federal e dos Governos Estaduais (FPM, cota-parte do ICMS, Fundos de Educação e Saúde, etc.).
Se não existissem essas ações compensatórias que compõem uma estratégia de sobrevivência das populações locais, jovens, idosos e deficientes físicos viveriam na miséria típica dos países mais pobres da África. A lógica política da Constituição de 1988 é a seguinte: do excedente econômico gerado nas áreas mais desenvolvidas do País, o Governo Federal extrai impostos, taxas e contribuições parafiscais formando a carga tributária, parcela significativa da qual financia as transferências de renda e de tributos.
É evidente que as populações desses municípios não estão conformadas com esse futuro para os seus filhos e filhas, principalmente aquelas lideranças locais que observam o descompasso entre a realidade social e econômica do município e o que poderia ser se fossem mobilizadas todas as potencialidades de desenvolvimento do município em que habitam.
Como observou Hyman Minsky, ao analisar as políticas públicas de superação da crise de 1929 nos EE.UU, as políticas de auxílio emergencial e de bem-estar social foram importantes para a saída da crise, mas que:
“A justiça se baseia na dignidade individual e na independência dos centros públicos e privados de poder político. A dignidade e a independência são mais bem atendidas por uma ordem econômica na qual a renda monetária é recebida ou por direito ou através de uma relação de troca justa. A renda de transferência governamental é um direito social que assegura a sobrevivência de famílias em situação de pobreza, por meio de acesso à renda e à promoção da autonomia dessas famílias. Um direito que, no Brasil, é de natureza constitucional a remuneração pelo trabalho realizado deveria ser a principal fonte de renda para todos. A dependência permanente de um sistema crescente de transferências de pagamentos que não foram ganhos é humilhante para quem recebe e destrutiva do tecido social. A justiça social e a liberdade individual exigem intervenções para criar uma economia de oportunidades na qual todos, com exceção dos deficientes e idosos, ganhem sua trajetória através de renda por trabalho. O pleno emprego é um bem econômico, assim como um bem social”.
Há saída para a promoção do desenvolvimento sustentável dos municípios de áreas economicamente deprimidas, de municípios com suas economias em decadência ou de municípios cuja base econômica apresenta baixo dinamismo e lento crescimento? Nesses quarenta anos de vida pública e de atividades de consultoria a minha resposta é sim, e por que não? Apresento brevemente nessa narrativa dois paradigmas de desenvolvimento local que são historicamente viáveis, realistas e implementáveis dentro do atual contexto de restrições e condicionalidades político-institucionais a que os novos Prefeitos estarão submetidos em sua gestão, a partir de janeiro de 2025. O que fazer, como fazer e para quem fazer?
Princípios: Endogenia e Participação
O desenvolvimento local e regional se processa a partir das próprias energias e criatividade da sociedade local ou regional, através do tripé das forças dos mercados, das lideranças políticas e dos segmentos organizados da sociedade civil ou seja, o desenvolvimento local não pode depender apenas de bons governos (Poder Público). É fundamental a mobilização social e política do Segundo Setor (Mercado) e do Terceiro Setor (Organizações Não Governamentais) para a formação de um processo de boa governabilidade.
Quando um Prefeito assume o seu mandato, como ocorrerá em janeiro de 2025, ele procura identificar de quais recursos irá dispor nos próximos quatro anos para realizar os compromissos que assumiu com o eleitorado. Usualmente, a resposta é dada em termos burocráticos dos recursos orçamentários, desconhecendo os recursos latentes tangíveis (capital natural, infraestrutura física e social, etc.) subaproveitados e os recursos latentes intangíveis (capital humano, capital institucional, capital social, capital cultural etc.).
O potencial de crescimento de países regiões e municípios com menor nível de desenvolvimento pode ser ampliado se as lideranças políticas e comunitárias conseguirem mobilizar os seus recursos latentes. Nesse caso, poderiam somar os recursos latentes aos fatores de produção tradicionais e multiplicar a capacidade da sociedade para equacionar os problemas de desenvolvimento econômico e socioambiental.
Recursos latentes são recursos humanos, tecnológicos e institucionais que permanecem subentendidos e não se manifestam, à espera de uma oportunidade favorável para serem ativados. Ou seja, somente emergem quando as circunstâncias político-institucionais são propícias para sua mobilização e quando as lideranças políticas e comunitárias percebem que os municípios e as regiões podem mais em termos de desenvolvimento sustentável.
Emergem, por exemplo, quando determinadas comunidades se organizam para realizar melhorias em suas condições de vida gradualmente. Os recursos latentes se manifestam por meio do espírito de iniciativa do empreendedorismo local, por eventuais poupanças financeiras e recursos materiais ociosos, pela capacidade de trabalho normal e extraordinário, pela criatividade em dar soluções inovadoras para antigos problemas, pela eliminação de desperdícios, etc.
As políticas públicas e programas de governos que priorizaram esse estilo de desenvolvimento foram bem sucedidas quando valorizaram a endogenia e a participação. Um modelo de desenvolvimento endógeno tem como ponto de partida o momento em que as comunidades locais se organizam e se mobilizam vencendo o estado de conformismo, de apatia ou de inércia. A participação se dá quando as comunidades locais, que são afetadas pelos custos e benefícios dos projetos de desenvolvimento, se envolvem na concepção e implementação, através de sugestões, críticas e dissidências.
É preciso que se faça um trabalho de conscientização dos diferentes grupos sociais do município a fim de que percebam que o desenvolvimento local não é apenas um problema do Governo Federal ou do Governo Estadual. Felizmente, as sociedades locais estão aprendendo a fazer desenvolvimento econômico e social com a participação restrita do Governo Federal, ou, até mesmo, dos Governos Estaduais.
Nos anos 1960 e 1970, as empresas públicas e as autarquias do Governo Federal foram responsáveis pelos principais investimentos realizados na promoção do desenvolvimento de muitas regiões, estados e municípios do País. Atualmente, há uma clara consciência de que a crise fiscal e financeira está dificultando as iniciativas do Governo Federal e dos Governos Estaduais, e de que as suas empresas ou têm sido privatizadas (siderúrgicas, petroquímicas, telecomunicações, etc.) ou, com destacadas exceções, estão passando por enormes dificuldades financeiras para concluir até mesmo projetos de investimento iniciados em décadas passadas; e de que o papel principal do Governo Federal passa a ser o de coordenação de uma agenda mais ampla dos interesses nacionais (consistência macroeconômica, concepção e execução das políticas nacionais de desenvolvimento, garantia da estabilidade do Pacto Federativo, etc.).
A reação a essas mudanças levou muitos líderes empresariais e políticos locais a abandonarem uma postura passiva e a procurar caminhos alternativos para o processo de desenvolvimento de áreas específicas, dependendo cada vez menos das incertezas e do comportamento errático dos recursos supralocais. Pouco a pouco, foram sendo registradas experiências de gestão urbana que colocavam a força da promoção do desenvolvimento econômico e social não apenas na atração e na negociação de recursos externos, mas, principalmente, na mobilização de recursos latentes disponíveis nas suas áreas de influência. Privilegiou-se o esforço endógeno, de dentro para fora, para se fazer desenvolvimento. Buscou-se a construção de parcerias interinstitucionais, entre as quais se destaca o SEBRAE no equacionamento dos problemas das micro, pequenas e médias empresas. Passou-se a destacar e a enfatizar o papel dos capitais intangíveis no processo de desenvolvimento regional e local.
Na área dos investimentos sociais, foi sendo descoberta a possibilidade de equacionar os problemas de habitação popular, nutrição, saúde e educação, sem depender das grandes e ineficientes burocracias governamentais ou de programas e políticas públicas centralizados em Brasília, mas utilizando recursos (naturais, empresariais, organizacionais) disponíveis no âmbito local ou microrregional. As comunidades se mobilizaram e, com menores custos e maiores inovações, foram gerando soluções novas para velhos problemas sociais, em um incontável número de experiências bem-sucedidas.
Na área de investimentos diretamente produtivos, houve também maior ênfase no esforço endógeno das comunidades locais como base para uma trajetória sustentável de crescimento. Na execução desses programas alternativos de desenvolvimento, têm sido levados em consideração os seguintes aspectos:
os empreendimentos incentivados são de pequena e média escala, formando um espaço onde novos empresários possam exercer a prática e o aprendizado da moderna economia de mercado;
os empreendimentos podem se constituir em atividades autônomas na relação direta com o mercado consumidor ou se estabelecer em uma multiplicidade de arranjos com grandes empresas, que vão desde a subcontratação, passando pelos licenciamentos e concessões, articulados com sistemas de produção flexível;
nas regiões e localidades em que não há tradição empresarial consolidada, não bastam os incentivos financeiros para que se estruturem novos empreendimentos; é indispensável que haja um sistema de assistência técnica organizada (como os do SEBRAE e das associações e federações empresariais) visando a apoiá-los na solução de problemas de natureza gerencial, de mercado, de produção, de tecnologia, de natureza fiscal e trabalhista, de natureza financeira. Essa assistência, contudo, não pode substituir as incertezas e os riscos típicos de todo o processo de investimento capitalista: vale dizer, as escolhas do que produzir, de como produzir, de onde produzir, de para quem produzir são de arbítrio próprio dos empresários, os quais, mesmo com incentivos e estímulos financeiros, são os responsáveis últimos pelos riscos dos empreendimentos nas economias de mercado. Como dizia François Perroux, um dos maiores pensadores econômico do pós-II Grande Guerra: “garantir o lucro é destruir o capitalismo”.
Enfim, nenhuma região ou município pode se desenvolver apenas com seus próprios recursos. Há sempre a necessidade de se atrair capacidade empresarial, recursos tecnológicos e poupança financeira de “fora para dentro”. Mas, hoje está cada vez mais evidente que esse esforço de desenvolvimento precisa brotar nos corações e nas mentes das comunidades locais, num paradigma "de baixo para cima" ou “de dentro para fora". (bottom-up and periphery-inward).
No Brasil, a polarização política tem gerado algum tipo de desconfiança sobre o papel do Terceiro Setor no processo de desenvolvimento regional e local, como se as suas organizações, principalmente as não governamentais, estivessem a serviço de alguma agenda oculta (interesses empresariais do exterior ao desestimular a comercialização de produtos agrícolas de áreas de desmatamento, externalidades negativas da exploração mineral, etc.). Em geral, essa desconfiança nasce de argumentos defensivos de produtores e exportadores que insistem em desrespeitar as estruturas regulatórias sociais e ambientais.
Em todos os países desenvolvidos, com democracias consolidadas, é fundamental que haja um Terceiro Setor estruturado e dinâmico para complementar as atividades típicas de governo e de corporações produtivas. O Terceiro Setor é constituído por organizações de iniciativa privada, sem fins lucrativos e que prestam serviços de caráter público, as quais se exprimem em fundações, associações comunitárias, organizações não governamentais, entidades filantrópicas, entre outras.
São características das organizações do Terceiro Setor, formalmente constituídas, estrutura básica não governamental, gestão própria, sem fins lucrativos, uso significativo de mão de obra voluntária. A partir de experiências de planejamento participativo com associações comunitárias, cabe acrescentar a essas características organizacionais: atuação ética e desinteressada, com visão de médio e de longo prazo e não imediatista.
Os bons governos inteligentes têm o maior interesse em apoiar as organizações do Terceiro Setor que complementam as suas ações programáticas, na busca de uma sociedade economicamente eficiente, ambientalmente sustentável e socialmente justa. Da mesma forma, as organizações produtivas de direção lúcida, que não se limitam a criar valor para os seus acionistas, mas a criar valor para a sociedade, têm apoiado fortemente as atividades de organizações não governamentais que têm por objetivo reduzir as mazelas da pobreza e da miséria, melhorar os níveis educacionais de grupos sociais específicos, apoiar projetos que visam a preservar, conservar e reabilitar os ativos e serviços ambientais, etc.
No caso das organizações não governamentais relacionadas com questões ambientais do País, há uma lógica específica que justifica a sua atuação. A maioria dos produtores e dos consumidores brasileiros trata os ativos (florestas, bacia hidrográficas, etc.) e os serviços ambientais como se fossem bens livres de uso comum, um mega almoxarifado de onde retiram recursos naturais (água doce, madeira, alimentos, etc.) e, igualmente, um mega lixão onde depositam os rejeitos e dejetos de seus processos produtivos e consuntivos (esgoto orgânico e inorgânico, dióxido de carbono, substâncias químicas danosas, etc.).
Quem decide, então, sobre as estruturas regulatórias e os mecanismos de mercado que possam desestimular essas práticas que agridem a sustentabilidade dos ecossistemas? Como tem insistido Amartya Sen, laureado com o Prêmio Nobel de Ciências Econômicas, em 1998, a obrigação social de sustentabilidade não pode ser deixada inteiramente por conta do mercado, uma vez que o futuro não está adequadamente representado no mercado – pelo menos o futuro mais distante.
Nesse sentido, pode se considerar a atuação das organizações não governamentais, dos movimentos sociais e dos promotores e procuradores do Ministério Público como se fosse, numa mesa de negociação, a vocalidade de defensores independentes dos interesses das gerações atuais e futuras quanto à conservação, preservação e reabilitação (ver os casos de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais) dos ativos e serviços ambientais. Algumas vezes as organizações não governamentais agem nadando contra a correnteza na diuturna e paciente construção de utopias. Mas, como diz Oscar Wilde, o progresso é a realização de utopias.
O primeiro paradigma de desenvolvimento local, que pode funcionar como uma lanterna de popa para a gestão administrativa dos novos Prefeitos, é a de mobilização social e política, dos recursos latentes disponíveis em cada município a fim de realizar um grande número de pequenos projetos através da tríplice aliança entre governo, mercado e sociedade civil organizada. Nos 5.565 municípios brasileiros deve haver mais de 3000 das diferentes experiências de desenvolvimento local com base na tríplice aliança, quase todas bem sucedidas, constituídas através do estilo de planejamento participativo espontâneo ou induzido nos seguintes segmentos socioeconômicos e socioambientais: nutrição e abastecimento, serviços comunitários, habitação popular, legalização de terras urbanas e rurais, saneamento nas pequenas comunidades, atividades de arte e cultura; etc.
O PARADIGMA DE DESENVOLVIMENTO DA TERCEIRA ITÁLIA: COOPERAR PARA COMPETIR
Depois da Segunda Grande Guerra, a Itália era conhecida por ter uma Região Norte desenvolvida e uma Região Sul subdesenvolvida, tendo como referências, respectivamente, Milão e Sicília. A partir dos anos 1970, quando ainda eram muito graves as inconsistências macroeconômicas no país, as lideranças políticas, empresariais e comunitárias do Centro-Nordeste (Veneto, Emiglia-Romagna) conceberam um modelo de desenvolvimento local que passou a ser conhecido como “modelo de desenvolvimento de distritos industriais da Terceira Itália”. Essa experiência deu excelentes resultados e as empresas localizadas nesses distritos são hoje responsáveis por mais de 50% das vigorosas exportações da Itália.
O modelo de desenvolvimento local da Terceira Itália se estendeu por outras regiões da Europa, constituindo, atualmente, uma macrorregião denominada de desenvolvimento do arco alpino (Nordeste da Itália, Rhone-Alpes na França, Baden, Württemberg e Baviera na Alemanha, Suíça e Áustria) com indicadores sociais e econômicos extremamente favoráveis. Nessa Macrorregião, as micro, pequenas e médias empresas continuam a ser a principal fonte de emprego e dos investimentos em quase todos os setores da economia.
As experiências bem-sucedidas de desenvolvimento com base nas micro e pequenas empresas levaram o economista britânico, nascido na Alemanha, E.F. Schumaker a escrever uma coleção de ensaios, em 1973 -“Small is Beautiful: A Study of Economics as if People Mattered”.
Através de convênio de cooperação técnica com a PROMOS, agência da Câmara de Comércio localizada em Milão, o SEBRAE trouxe as experiências dos Distritos Industriais para o Brasil, a partir do ano 2000 na gestão de Sérgio Moreira e, atualmente, acumula mais de 300 experiências em aglomerações produtivas de micro e pequenas empresas em todas as regiões brasileiras. No Brasil, adotou-se a denominação de Arranjos Produtivos Locais (APLs) para não confundir com os nossos distritos industriais (espaço urbano dotado de infraestrutura econômica, preparado para a atração de atividades industriais). Os Distritos Industriais Italianos são uma instituição e não um espaço físico e tiveram como seu embrião conceitual a obra clássica de Alfred Marshall: “Princípios de Economia”(1890).
O Distrito Industrial Italiano se define como um grupo de empresas (em geral, micro, pequenas e médias empresas) altamente concentradas geograficamente (em um município ou em uma região) que, direta ou indiretamente, trabalham para o mesmo mercado final (nacional ou internacional). As empresas de um Distrito Industrial Italiano compartilham valores e são especificamente interligadas em um conjunto complexo de concorrência e cooperação, no qual a fonte principal de competitividade são os elementos de confiança, solidariedade e cooperação entre as empresas, resultante de estreitas interdependências de relações econômicas, sociais e comunitárias. O seu mote principal é o de cooperar para competir. Essa concepção foi adotada, adaptada e implementada dentro da realidade socioeconômica e socioambiental pelas equipes técnicas do SEBRAE.
É antiga a preocupação dos formuladores e executores de políticas públicas de desenvolvimento regional e local em encontrar mecanismos e instrumentos eficazes para estimular o crescimento econômico dos municípios ou dos aglomerados de municípios. Entre as modernas alternativas propostas como base analítica para a formulação e a implementação de políticas públicas voltadas para dinamizar o crescimento da renda e do emprego em localidades e regiões, está a formação de Arranjos Produtivos Locais, particularmente onde haja elevado grau de concentração de micro e pequenos empreendimentos setorialmente especializados.
Segundo os trabalhos do SEBRAE, os Arranjos Produtivos Locais (APLs) consistem em indústrias e instituições que têm ligações particularmente fortes entre si, tanto horizontal quanto verticalmente. Usualmente, a organização de um APL inclui: empresas de produção especializada; empresas fornecedoras; empresas prestadoras de serviços; instituições de pesquisas; instituições públicas e privadas de suporte fundamental. A análise de APLs focaliza os insumos críticos, em um sentido geral, que as empresas geradoras de renda e de riqueza necessitam para serem dinamicamente competitivas. A essência da organização de APLs é a criação de capacidades especializadas dentro de municípios e regiões para a promoção de seu desenvolvimento econômico, ambiental e social. É estruturado e implementado dentro do modelo de desenvolvimento local, regional endógeno, com participação espontânea ou induzida das lideranças locais e dentro do estilo de planejamento para a negociação.
O conceito de APL adotado pelo SEBRAE em projetos de promoção de renda e emprego e em programas de desenvolvimento local, pretende se aproximar do conceito de distrito industrial italiano. Esse conceito de APL pressupõe “constelações de micro e pequenas empresas autônomas de base local que conseguem desenvolver formas cooperativas de produção altamente flexíveis, inovadoras e competitivas, inclusive com capacidade de penetração nos grandes mercados internacionais”.
A metodologia de promoção e consolidação de APLs pode se transformar em instrumento inovador do desenvolvimento sustentável, a nível regional ou local, desde que se dê ao conceito de APL uma perspectiva mais abrangente do que um mero ciclo de expansão econômica não sustentável. Estão em andamento no Brasil, mais de 300 experiências de promoção e desenvolvimento de APLs, muitas das quais incapazes de atingir os seus resultados finalísticos por diferentes motivos (estima-se que há no Brasil cerca de 3000 aglomerados produtivos de micro e pequenas empresas espalhadas pelos 5.565 municípios, desde catadores de caranguejo no Delta do Parnaíba até empresas de TI, spin-offs das Universidades brasileiras como é o caso do projeto “Brasília Capital Digital”).
Em primeiro lugar, não faz sentido se falar em um APL sem contextualizá-lo espacialmente, em termos dos municípios ou das regiões em que se localizam, por causa do nível organizacional dos produtores, da qualidade da mão-de-obra, da logística de transporte, dos indicadores de desenvolvimento sustentável, dos insumos de conhecimentos científicos e tecnológicos, etc. Neste sentido, um APL não será competitivo se a região ou a localidade onde opera não for igualmente competitiva em termos da qualidade de sua infraestrutura econômica, social e político-institucional.
Um APL, embora tenha um núcleo de atividades-chave orientadas para as exportações inter-regionais e internacionais, depende, para ser competitivo em escala global, de uma articulação com serviços de suporte empresarial (serviços de informática, de manutenção de equipamentos, de testes de qualidade etc.), de atividades para o suprimento à jusante e para o beneficiamento à montante da cadeia produtiva. Neste sentido, as empresas-núcleo de um APL não serão competitivas se todo o conjunto do APL não for também competitivo.
O sucesso de um APL depende de uma boa gestão das externalidades e das economias de aglomeração. Não há sustentabilidade de um APL se a forma como se relaciona com a natureza (o contrato natural) levar a um uso da base local ou regional de recursos renováveis e não renováveis que venha a comprometer os níveis de produtividade econômica e de bem-estar social das futuras gerações. Da mesma forma, não há sustentabilidade de um APL se a forma como se relaciona com a sociedade local e regional onde se insere (o contrato social) criar deseconomias sociais de aglomeração (poluição, congestionamento) que afetem adversamente as condições de vida dos habitantes em seu entorno de influência direta e indireta. Neste sentido, um APL poderá se tornar autofágico se não souber lidar civilizadamente com as relações comunitárias e as relações ambientais em sua área de influência.
A concepção de um APL é essencialmente holística, envolvendo um processo de desenvolvimento integrado de um conjunto de atividades produtivas interdependentes, tecnologicamente e espacialmente. Entretanto, a organização de um APL não deve se transformar em um convite ou em uma tentação de se formar uma autarquia regional ou local. Por ser composto por diferentes segmentos produtivos com escalas ótimas de produção muito diversificadas, um APL não pode abranger todo o conjunto de atividades em um mesmo espaço relevante, particularmente quando se consideram as possibilidades de suprimento e de beneficiamento em escala internacional. Assim, um APL tem que priorizar a sua competitividade dinâmica, mesmo que venha a contrariar interesses mais imediatos, legítimos ou velados, de municípios e regiões onde se localiza.
A análise da competitividade dinâmica é, essencialmente, a busca de excelência que permita ampliar o efeito diferencial de uma organização, de um setor produtivo e de uma região ou município, independentemente de se estar operando com atividades de crescimento mais lento ou mais dinâmico em escala nacional ou internacional. É evidente que um sistema de incentivos fiscais e financeiros bem orientado poderá contribuir seletivamente para que se acelere, em situações específicas, o avanço da competitividade, particularmente quando se trata do progresso tecnológico.
Mas, os fundamentos da competitividade moderna estão no desenvolvimento científico e tecnológico incorporado nas organizações públicas e privadas. Neste sentido, a sustentabilidade de um APL tem muito mais a ver com a qualidade do capital humano e intelectual que comanda cada uma das suas atividades, do que com eventos efêmeros de natureza macroeconômica (apreciação ou desvalorização cambial) ou de políticas regionais (sistemas de incentivos em regime de guerra fiscal), que podem gerar competitividades espúrias.
Os dois paradigmas de desenvolvimento local apresentados para serem implementados com sucesso não dependem de que as novas administrações dos municípios, a partir de janeiro de 2025, tenham à sua disposição um superávit fiscal primário para financiar programas e projetos de desenvolvimento sustentável (=economia dinâmica globalmente competitiva + equidade social + sustentabilidade ambiental). Ao contrário, muitos desses programas e projetos são viáveis até mesmo em um contexto de crise fiscal nos municípios.
Esses dois paradigmas são concebidos e implementados segundo o modelo de desenvolvimento endógeno dentro do estilo de planejamento participativo. Assim, os seus resultados serão bem sucedidos quando no município houver:
a. elevada capacidade de endogenia das comunidades locais;
b. um grupo de vanguarda empresarial;
c. lideranças comunitárias com práticas de ação coletiva;
d. capacidade de negociação com associações de empreendedores e órgãos da administração direta e indireta do Governo Federal e do Governo Estadual visando à implementação das atividades dos programas e projetos;
e. perspectiva dominante do planejamento de longo prazo.
REFERÊNCIAS
Na elaboração desse texto, baseei-me em:
1. SEBRAE – Os Desafios das Novas Administrações Municipais – Brasília, 2024.
2. Hyman Minsky – Stabilizing an Unstable Economy, Mc Graw Hill, 1986.
3. Paulo R. Haddad – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) – Narrativas para a Construção do Futuro. Ed. e-Galáxia, Caravana, 2023.
4. Paulo R. Haddad – Participação, Justiça Social e Planejamento, Zahar Editores, 1980.
5. Paulo R. Haddad – Três Ensaios Sobre a Economia Brasileira, Livro1 – A Amazônia e as Ideologias Ambientais, Livro 2 – Como as Regiões se Desenvolvem – Narrativas, Livro 3 – Planejamento e Políticas Públicas no Brasil. Ed. e-Galáxia, 2022.
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