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O CURTO E O LONGO PRAZO


O estilo de condução das políticas públicas para resolver os nossos problemas socioeconômicos e socioambientais tem sido, desde 2014, o que se denomina de ajustes incrementais. Segundo esse estilo de governar, mesmo sem uma visão do futuro, sempre que os formuladores das políticas públicas encontram um hiato ou um descompasso entre uma realidade observada e uma situação ideal, adotam, em seguida, medidas de comando e controle ou de mecanismos de mercado para preencher esse hiato. Ao se fechar um hiato, contudo, sempre se abrem outros; ao se resolver um problema, criam-se outros, e então esses passam, num momento seguinte, a serem percebidos politicamente como problemas e são realizadas novas tentativas com o objetivo de fechar os hiatos entre as situações ideais e a realidade.


Segundo Kenneth Boulding, esse estilo pragmático de governar, com foco no curto prazo e em ações casuísticas, pode ramificar-se quase indefinidamente, e há muitas situações em que se torna razoavelmente bem-sucedido como padrão de resolver problemas e mobilizar os potenciais de desenvolvimento de um país ou de uma região. E os gestores públicos se sentem gratificados com sua habilidade e pragmatismo quando vão vencendo as batalhas do dia a dia, em uma sequência interminável de novos problemas. Enfrentam uma avalanche de problemas, mas a cada dia bastam os seus cuidados. Como diriam os franceses “à chaque jour suffit sa peine”.


A situação muda totalmente de figura quando a exaustão de um ciclo de prosperidade ocorre e a economia perde sua dinâmica de crescimento. O crescimento econômico não é um subproduto cronológico de um ajuste qualquer. Num contexto em que prevalecem, simultaneamente, uma crise social e uma crise ambiental, surgem problemas de grande dimensão, complexidade e transversalidade que podem não ser percebidos e muito menos resolvidos por nenhum protagonista ou instituição isoladamente, que se encontram, muitas vezes, autocentrados nos seus interesses específicos de curto prazo ou imediatistas.


Emerge, pois, a necessidade complementar de um novo e indispensável estilo de governar baseado num enfoque de perspectiva ou de visão de futuro, através do processo de planejamento de longo prazo, no qual as ações programáticas sejam de natureza reestruturantes e não incrementais; vocacionadas para grandes mudanças e transformações econômicas, político–institucionais; inovadoras no sentido de buscar alternativas para a solução dos problemas estruturais. Esse novo estilo aparece nas experiências históricas de desenvolvimento de muitos países, com a denominação de Grande Transformação.


Karl Polanyi, que analisou a Grande Transformação do capitalismo nos EE.UU. e na Suécia, a partir da crise de 1929, concluiu que: “A crença no progresso espontâneo pode cegar-nos quanto ao papel do governo na vida econômica. Esse papel consiste, muitas vezes, em alterar o ritmo de mudança, apressando-o ou diminuindo-o, conforme o caso. Se acreditarmos que tal ritmo é inalterável ou, o que é pior, se acreditarmos ser um sacrilégio interferir com ele, então não existe mesmo campo para qualquer intervenção”.


A administração econômica do Governo Federal vinha trabalhando com o modelo de austeridade fiscal expansionista, o qual parte do esforço de equilíbrio das contas consolidadas do setor público e se apoia nas reformas da previdência, do sistema tributário e do próprio Estado. Espera criar um ambiente de expectativas favoráveis e de incertezas mitigadas que poderiam induzir a retomada do crescimento econômico. Embora seja indispensável que se realize a consistência macroeconômica de nossa economia a fim de que se elimine de vez o fantasma da inflação e se reverta a percepção de que o País caminha para a insolvência financeira, há ações programáticas fundamentais para que a nova década dos anos 2020 não se perca também em uma sequência interminável de ajustes de curto prazo.


O Brasil precisa voltar a crescer de forma sustentada e sustentável. E também de forma acelerada para cobrir as dívidas e os déficits socioeconômicos e socioambientais acumulados no passado. A nossa história mostra que os problemas sociais e econômicos podem ser melhor resolvidos quando o País está crescendo significativamente e não apenas através de espasmos ocasionais.


À medida que a economia cresce, dependendo do modelo de desenvolvimento adotado, é relativamente mais fácil utilizar o excedente econômico em expansão para financiar adequadamente as oportunidades de investimentos, gerando emprego de qualidade e renda. Torna-se mais fácil, também, ampliar e consolidar as transferências de renda das políticas sociais compensatórias para os pobres e os miseráveis, assim como as transferências fiscais para as áreas economicamente deprimidas. Mas, principalmente, que se concebam e implementem mudanças estruturais segundo os compromissos do País com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Não se pode esperar que essas transformações venham a ocorrer de ajuste em ajuste no curto prazo.


O papel do tempo na análise dos problemas econômicos sempre foi uma questão controversa. Em 1923, Keynes, procurava estabelecer uma noção clara do que seria o curto prazo. Para ele, no curto prazo, há um passado que já transcorreu e trouxe, para o presente, a acumulação de um estoque de capital físico (fábricas, áreas agricultáveis, infraestrutura econômica e social), um dado perfil de distribuição de renda e de riqueza, uma força de trabalho com diferentes qualificações, os fundamentos das instituições políticas e sociais e certo grau de degradação do capital natural, etc. Trouxe também, no caso brasileiro, problemas acumulados da crise social e da crise ambiental.


Políticas econômicas de curto prazo devem ser operadas dentro das restrições impostas por um tempo histórico e irreversível. Entretanto, uma sequência quase interminável de políticas de estabilização como vem ocorrendo nos últimos anos pode impactar, através de efeitos inesperados, a distribuição funcional e pessoal da renda nacional, a estrutura e a qualidade da oferta de serviços públicos tradicionais, os níveis de riscos e de incertezas dos investimentos diretamente produtivos, etc. Ou seja, de ajuste em ajuste, o que se pensava ser tão somente políticas explícitas de curto prazo vai se tornando, silenciosamente, políticas implícitas de médio e de longo prazo. Parafraseando Keynes, de curto em curto prazo, no longo prazo estaremos todos mortos.


Como diz o poeta Mário Quintana: “O passado é lição para refletir. Não para repetir”. E a nossa lição é colocar em marcha um novo paradigma de desenvolvimento sustentável, cujas ações programáticas possam vingar em um ambiente macroeconômico de ajustes fiscais e financeiros, rigorosos e recorrentes. O que torna necessário resgatar as experiências de planejamento de longo prazo. Segundo Peter Drucker, o planejamento de longo prazo não lida com decisões futuras, mas com o futuro das decisões presentes.


Políticas de curto prazo de estabilização monetária devem se articular e se integrar com políticas de desenvolvimento sustentável. Os conceitos de curto e de longo prazo são construções analíticas devidas a Alfred Marshall, em 1890. Não são prazos referenciados ao tempo-calendário, nem políticas econômicas a serem implementadas sequencialmente. Estabilizar não é pré-condição necessária e suficiente para desenvolver, como ilustra a experiência de planejamento de Campos-Bulhõesem 1965. À época, elaborou-se um programa de estabilização (o PAEG), simultaneamente com um programa de reformas político-institucional de médio prazo e um plano decenal de desenvolvimento, gerando o ciclo de expansão do “milagre econômico”.


Ocorre, porém, que o tempo da política é mais acelerado, menos flexível e menos tolerante. Uma população altamente mobilizada pelas práticas recentes de ação coletiva, que vivenciou pelo menos uma década de intensa mobilidade e de progresso social com melhorias inquestionáveis na distribuição de renda, não está disposta a se conformar com o seu empobrecimento e com sua decadência econômica e social. Particularmente quando assistiu à concentração da riqueza financeira induzida pelas medidas da austeridade socialmente assimétricas e o avanço das práticas inusitadas de corrupção sobre os recursos públicos.


Como, no Brasil, a maioria dos planos e políticas públicas elaboradas pelos governos não chega a ser implementada, não basta concebê-los adequadamente, com rigor técnico e participação dos que serão impactados pelos seus custos e benefícios, mas é fundamental também que tenham uma gestão eficiente e eficaz. Uma gestão que acompanhe os valores do milênio segundo Ítalo Calvino, leveza, rapidez, exaustão, visibilidade, multiplicidade e consistência.


Não se pode esperar que, de curto em curto prazo, as atuais políticas econômicas nos levarão ao tempo do desenvolvimento. Como diz Alice no País das Maravilhas: “Dizem que o tempo resolve tudo. A questão é: Quanto tempo?”.

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